Tá todo mundo tentando: chegar em casa
Uma história pré-pandemia. E uma mudança de formato.
🎶 para ouvir lendo: “This is not America”, das minhas preferidas do Bowie (Spotify/Youtube)
Desde o primeiro número (aquele do cigarro) o “Tá Todo Mundo Tentando” traz uma crônica, normalmente escrita durante a semana sobre algo que está acontecendo na minha vida. Hoje, não. Talvez tenha faltado assunto, não sei. Mas vale contar que um dos meus projetos pessoais preferidos é um livro (inacabado) de histórias da vida em São Paulo circa 2017-18 – festas, excessos, dramas, ressacas, muita dor de amor e tudo aquilo que importava antes do Brasil entrar em modo distopia level hard. O texto abaixo, um conto curto, ficcional, faz parte dessa leva e foi escrito em 2018. Se você gostou, me conta. Tem mais de onde ele veio.
Valéria acordou em um apartamento estranho. Um apartamento que ela sabia de era do moço bonito da festa de ontem, o venezuelano. O que ela não sabia era nome dele, ou onde ele estava. O bilhete que ela encontrou em cima da mesa, escrito numa letra corrida bonita, não dava nenhuma dica:
tive que sair cedo e não quis te acordar
lembre de beber água, sinta-se em casa
passe a chave por baixo da porta quando sair
:)
Olhou para a porta mas não achou a chave. Começou a procurar em cima da mesa, perto do bilhete. Pensou que algum gato podia ter derrubado no chão, mas o lugar não tinha sinal de vida animal. Era um apartamento amplo, antigo, com janelas grandes dando para a Avenida 9 de Julho. Tirando a mesa com duas cadeiras e peças de arte apoiadas nas paredes, era totalmente branco e vazio. Valéria voltou a atenção para o papel assinado com um sorrisinho, andou pela sala, desceu as costas para debaixo da única mesa, olhou ao redor coçando a cabeça: sem chave. O venezuelano bonito sem nome tinha esquecido de deixar a chave.
Pensou em tentar a porta dos fundos. Apartamento antigo sempre tem uma segunda porta. Entrou na cozinha enorme que só tinha uma máquina de café em cima do balcão de mármore preto. Pegou o pod de café no armário junto de uma xícara de vidro com jeito de coisa cara e lavou as mãos na pia enquanto a máquina preenchia o lugar com seu rrrrrrrrr mecânico. Bebeu água, obedecendo o recado. Com a xícara de café nas mãos, voltou para a sala onde não havia nem chave e nem sofá, só umas almofadas grandes ao lado de um enorme globo de espelho pendurado até perto do chão por um fio metálico, que refletia a luz fazendo pequenos quadradinhos dançarem na parede da sala. Sem entender se a luz refletida era da manhã ou da tarde, Valéria quis pegar o celular para ver as horas. E sentiu a barriga gelar.
Conhecia bem a sensação. Quando acordando em casa, a primeira coisa a fazer era sempre enfiar a cabeça debaixo do travesseiro e depois esticar o braço para pegar o telefone e começar a checar o estágio de degradação da noite anterior. Aqui não tinha travesseiro com cheiro familiar, também não tinha celular. A solução era dar tempo da cabeça descansar até aparecer alguma ideia de escape. Tomar mais água. Tomar outro café. Tomar um banho.
O banheiro da casa do venezuelano era minimalista como o resto do apartamento. Foi o piso quadriculado preto e branco, igualzinho ao do seu apartamento, que acionou o gatilho. Eles estavam se pegando, não transando mas se pegando com força em outro banheiro. Alguém bateu na porta. Começaram a dar risada e abriram a porta. A Joana e a Fabi estavam brigando histericamente, daquele jeito que elas fazem de vez em quando. Valéria ficou sem saber o que fazer. O venezuelano nem ligou, a puxou pela mão e a levou pra cozinha e os dois saíram por lá, pegando um táxi na República e vindo parar aqui. Deram uns tecos em cima de um livro, cadê o livro agora, deixando pra transar depois. Mas nenhum dos dois conseguia parar de falar, e ao invés de trepar ficaram conversando dormir.
Valéria levou uns dez minutos olhando o chão e tentando organizar as lembranças, e só levantou da privada porque a perna começou a doer. Pegou mais um copo de água na cozinha e deu uma nova chance pra busca, mas nem sinal do celular, da bolsa, da chave, do nome ou paradeiro do venezuelano. Vai aparecer, repetia, vai aparecer. Pegou uma malha branca no armário quase vazio do quarto e botou por cima da camiseta emprestada dele. Lembrou: não se preocupa. Era ele repetindo na saída da festa, do club, do bar. Vai aparecer, não se preocupa. Isso tinha que ter sido antes de terem ido pra casa porque ela lembrava que na saída do bar ainda estava escuro e depois na saída do seu apartamento já era quase dia, a hora mágica da manhã. Entraram correndo no táxi e vieram até a casa dele e eu já não estava com minha bolsa? Cheguei em casa sem minha bolsa? Minha bolsa ficou no club, festa ou bar? Que club, festa ou bar era mesmo? Ia voltar, a lembrança ia voltar que nem as coisas sumidas, que nem a chave, que nem o nome dele. Ela só tinha que dar tempo. Relaxar. Hidratar também, hidratar é importante pra fazer a cabeça voltar a funcionar, alguma coisa sobre fazer a circulação do cérebro funcionar.
Valéria quis voltar a dormir, mas o café e o enjoo não deixavam. Deitou no colchão no chão, se cobriu com o edredon e ficou olhando pro teto, esperando a solução mágica que ia chegar junto com as coisas perdidas, com a chave, com o dono da casa. Mas não chegou. O que chegou, aos poucos, em minutos que pareciam horas porque lá fora a cidade começava a escurecer, foi a ordem dos acontecimentos da noite anterior. Tinha começado numa festa no apartamento do Daniel. Num momento chegou um monte de gente de uma vez só. Drogas circularam, bebida fluiu, luzes apagaram, volume aumentou. Ela se atracou com o venezuelano, provável cara mais bonito que já tinha visto na vida. Onde você esteve todo esse tempo? Eu? Ele riu, Eu acabei de chegar. De manhã ele contou que trabalhava como marchand de uma galeria de arte moderna. Estava em São Paulo por tempo, depois quem sabe pra onde? Na balada e na vida o ”quem sabe pra onde” do venezuelano também era verdade na noite paulistana. Tinha outra festa e eles foram juntos. Essa segunda festa era no bar-boate-puteiro de sempre, aquele da Sete de Abril. Por isso que dali foram pro apartamento dela era perto. Foram andando mesmo e ela estava nervosa porque achava que tinha perdido a bolsa. A bolsa e o celular. Na hora nem importava tanto então ela estava só mais ou menos nervosa — porque tão bonito o sorriso do moço, tão bonita a risada dele, tão agradável ele falando português com sotaque, querendo ser gentil e dizendo que ia ficar tudo bem, que a bolsa ia aparecer. Por isso foram pra casa rindo e entrar não foi problema porque já tinha gente lá, a Joana e a Fabi, mas elas estavam brigando e foi daí que teve a coisa do banheiro e então eles vieram pra esse outro apartamento, o apartamento grande cheio de artes, com o colchão no chão, a roupa de cama toda branca com cheiro de suor, as almofadas e o globo de espelhos que agora não refletia mais nada porque tinha ficado escuro.
Lembrou que tinha que tomar alguma atitude, qualquer atitude, pra sair dali. Uma coisa sobre a ressaca, tanto física quanto moral, é que ela te chama pra dentro. Dá pra ficar mergulhado na ressaca durante horas porque as horas passam daquela forma estranha, meio estacionadas e meio passando rápido demais. Não era uma daquelas ressacas tipo “dá pra morrer de ressaca? google pesquisar” mas era uma daquelas ressacas de confusão feat. remorso, em que a coisa mais urgente não é comer, é colocar as coisas em perspectiva, a ressaca que clama por análise, por apoio, por companhia.
Aos poucos e de forma meio doída o corpo foi tomando jeito. Achou o vestido, os sapatos, tudo espalhado do lado da cama. Tomou uma ducha longa. Usou uma toalha nova e felpuda que achou no armário. Fez mais um café e saiu acendendo as luzes. Procurou debaixo da mesa, debaixo das cadeiras, debaixo do tapete e pelos cantos. Começou a achar que a falta da chave era algo proposital, que ele queria que ela ficasse ali esperando. Essa ideia a irritou, mas Valéria sabia que não deixar a chave pra sair podia ter sido só uma distração irresponsável e quem era ela pra falar de irresponsabilidade? Quando você entra pro time das más decisões você perde o direito de reclamar dos outros. Somos todos inocentes na desgraça do dia seguinte.
O ruído do interfone tocando no apartamento do vizinho a interrompeu. Valéria correu pra cozinha, tirou o interfone do gancho e esperou. Tocou três vezes antes de uma voz de homem atender: “portaria”. Valéria explicou com um fiapo de voz, achando engraçado ouvir sua voz pela primeira vez no dia, que o dono do apartamento tinha saído e não tinha deixado a chave e que ela precisava ir embora e será que ele poderia ajudar chamando um chaveiro? “Chaveiro a essa hora aqui no Centro até tem dona, mas vai sair caro.” Ela pensou em explicar que não tinha dinheiro, mas a voz nem saía direito pra falar que essa conta ia ficar com o venezuelano, que ele ia resolver depois. Além do mais, como explicar sem saber o nome do dono da casa? Pode chamar, moço. Eu preciso sair e não sei quando ele volta. “Ah, o Carlos foi viajar. Mas ele sempre deixa a chave pra emergência, vou aí abrir pra senhora.”
Ele se chama Carlos. Ele foi para Caracas. Ela sabia tudo isso, só não lembrava. Não lembrava por causa do resto de álcool no sangue, por causa da falta de comida, por causa do excesso de sono. Não lembrava por causa das lembranças da noite. Estava quase tudo bem. Estava tão bem que Valéria podia enxergar em cima da sua cama, na sua casa, a bolsa que ela tinha decidido não levar para a festa, a bolsa e o celular que ela tinha deixado pra trás para não correr o risco de perder. Não levou, não perdeu. Sempre existe uma chave reserva.
👉 Mudancinha
As dicas de livros/podcasts/newsletters amigas e outras coisas mais de toda semana vão mudar de lugar. A partir da semana que vem estarão no Paulicéia (minha outra newsletter, mais sobre isso logo abaixo). Acontece que ando com dificuldade em manter três edições de newsletters toda semana. Eu sei, eu sei, é o universo me dizendo “você não queria escrever, gata? então escreve!”. Não me leve a mal, amo o que faço e sou muito grata pelo volume de trabalho. Mas existe uma necessidade real de organização e, visto que o melhor do “Tá todo mundo tentando” são as crônicas, é nisso que vou investir meus esforços. Não ache ruim. E assine o Paulicéia, é bem legal.
📥 Paulicéia
O assunto da semana no Paulicéia foi o ralador de queijo gigante da Paulista, a casa do golpe, berço do pato amarelo e do sapo verde: o edifício FIESP-SESI-SENAI. Ou melhor, é sobre o complexo cultural que existe dentro dele. A entrevista é com a Debora Vianna, gestora cultural do SESI. Entre outras coisas, confirma o retorno do FILE em 2022.
A partir da semana que vem o Paulicéia também muda, mas conto sobre isso por lá mesmo, na edição de segunda.
🤑 Tip jar
A “Tá todo mundo tentando” é e continuará sendo gratuita. Se você gosta do que escrevo aqui e quer incentivar 💰 agradeço demais. Você pode usar o Ko-Fi, ou minha chave Pix, que é gaia.passarelli@gmail.com. Só não esqueça de me avisar aqui no email, assim posso te agradecer diretamente.
⭐ Chegou agora?
Leia essas também:
🌆 Tá todo mundo tentando: fazer as pazes com São Paulo
Sim, queremos mais crônicas, histórias de ficção, continhos! Seu jeito de escrever, com detalhes e sem floreios, é muito agradável de ler
Pode mandar mais! <3