Tá Todo Mundo Tentando: como se fosse fácil
Há que ter muita personalidade para manter o mesmo corte de cabelo por meio século
Para ouvir lendo: “Kid”, do Pretenders. Tá na playlist da Tá Todo Mundo Tentando no Spotify.
Oi,
Às vezes, o texto baixa quando a gente está dentro de alguma atividade cotidiana, tipo na academia, no ônibus, no mercado. Às vezes, baixa no meio de um show. Não sei como é com vocês, mas eu não tenho tantas oportunidades de inspiração espontânea, então quando acontece preciso valorizar. Mesmo que signifique correr prum canto e escrever algo no celular — a pior forma de escrever.
Boa leitura e até semana que vem,
g.
1. O CD, aquele disquinho prateado, leve e barato, que ficou no meio do caminho entre o peso custoso do vinil e a praticidade descartável do MP3, apareceu no mercado quando eu era pré-adolescente e estava começando a formar meu gosto musical.
Antes, todo mundo comprava vinis. Ainda hoje, eles me parecem escolhas mais sérias, feitas para momentos de contemplação de capa, encarte. Já o CD, dentro de suas caixinhas plásticas baratas, eram quadradinhos menores na construção das minhas escolhas estéticas. Mas também por isso, acho, minha versão de 13 anos se permitia arriscar mais neles. Gastar mesada na escolha de um CD na loja perto de casa era mais uma satisfação de curiosidade do que uma tentativa de definição de personalidade, numa época em que tentar definir quem eu era através das escolhas musicais tinha uma importância enorme (ainda tem).
Entre os primeiros CDs que comprei, estavam o álbum da vaca do Pink Floyd, um best off do Joe Cocker e o álbum branco dos Beatles — esse, o único que ouvi de verdade e que rendeu uma obsessão não muito sadia com “Helter Skelter” assunto para outra edição. Depois, também em CD, vieram dois discos que de fato solidificaram minha formação musical, o “Heaven or Las Vegas” do Cocteau Twins e o “Disintegration” do Cure. If you know, you know.
Um pouco mais tarde, já morando em outro bairro e já ganhando meu primeiro salário como garçonete de bar, comecei a gastar em CDs. Primeiros salários eram para isso mesmo: roupa, disco e droga. Saudades. Foi mais ou menos por aí que adquiri meus primeiros Lou Reed, Stooges, Deee-Lite: sempre eclética, sempre com ótimo gosto. E numa dessas explorações de prateleiras de CDs, comprei uma coletânea de singles do Pretenders.
Levei para casa menos pelos (muitos) hits que eu já conhecia porque todo mundo conhecia, e mais pelo encarte com fotos pebê da banda, incluindo imagens da band leader Chrissie Hynde em seus looks masculinos, os olhos maquiados debaixo da franjona preta. Rebelde, sexy, forte. Tudo que eu queria ser.
2. Vi a Chrissie Hynde no palco de um festival de música no Parque do Ibirapuera em São Paulo, semana passada. A noite também teve Air e Gossip, mas o Pretenders era a banda que eu queria ver, muito pela lembrança afetiva. Cheguei em tempo de entrar de ver a Chrissie: aos 73 anos, ainda rebelde, sexy e forte, com a franjona grisalha por cima dos olhos — há que ter muita personalidade para manter o mesmo corte de cabelo por meio século.
De guitarra em punho, jeans justos, botas pretas acima do joelho e camiseta justa, fosse só imagem já seria foda. Mas o mais importante estava lá: a voz. E que voz. Clara, firme, plena. A mesma excelente voz do greatest hits de 1987, só que em 2025, ao vivo. Não é todo mundo que segura essa onda.
3. Conheci mais da Chrissie Hynde quando comecei a ler a sério sobre música. Primeiro, no (obrigatório) “Mate-me por favor” e depois na autobiografia do Nick Kent, “Apathy for the Devil”. Ela aparece ainda na série ”Pistol”, do Danny Boyle.
A Chrissie é de Akron, em Ohio (a mesma cidade do Devo e dos Black Keys) e na adolescência pegava estrada até Cleveland para ver shows. Estava em Kent State quando a Guarda Nacional abriu fogo contra estudantes em 1970. Pouco depois, voou para Londres com o plano de escrever sobre música. Trabalhou na NME, que era o semanário musical mais importante da Europa, na época. Frequentou a loja da Vivienne Westwood, morou em carros, quase casou com Sid Vicious (por motivos de visto) e andou com o Joe Strummer. Mas, mais do que escrever sobre música, queria estar dentro dela. Seu desejo era criar, não ser só a pessoa que escreve sobre os outros. E em 1978, de volta aos EUA e formou o Pretenders, misturando punk, new wave e pop com uma naturalidade que só parecia simples. Com uma voz crua e melódica ao mesmo tempo, letras afiadas e uma presença que recusava performar feminilidade do jeito esperado, Chrissie era e ainda é sexy, andrógina, largada, elegante, intensa e altiva. Aos 73 anos, de franja grisalha e guitarra em punho, exala magnetismo no palco, sem pedir licença a nada nem ninguém. Aquilo que em inglês chamam de true original.
4. Quem quiser ir além dos discos, pode mergulhar em “Reckless: My Life as a Pretender”. A autobiografia da Chrissie define, logo no subtítulo, o tom do livro e da vida: impulsos, erros e uma urgência de viver tudo, o tempo todo. A escolha de reckless, algo como “descuidada,” já se adianta à crítica: fui meio irresponsável, e aí?
Não é uma autobiografia na linha "estava no lugar certo na hora certa". Quase todas as páginas são sobre anos de formação — a infância, a adolescência, a parte caótica, a ascensão da banda, as overdoses dos colegas, os erros cometidos no caminho. Fica a impressão de que a Chrissie não tem muito saco para autocelebração. O que veio depois, a glória, as tours mundiais — quem viu, sabe, o resultado fala sozinho. Se basta.
Tenho certeza que aqui em São Paulo, olhando um mar de gente, com jovens (como meu filho) e cacuras (como eu) cantando o ôôôô -ô do refrão de “Back on the Chain Gang”, Chrissie sentiu, mais uma vez, a segurança de ter feito a escolha certa na vida.
Newsletter amiga da semana: Taís Bravo
Na edição dessa semana, a colega substacker
compara o processo de escrever com o preparo de uma refeição lenta e elaborada, lembrando que o trabalho da escrita exige tempo, planejamento, ferramentas e presença.Ela descreve três etapas: reunir referências e materiais (“ir ao mercado”), estruturar o texto (“desenhar a receita”) e, por fim, escrever de fato (“mexer as mãos”), como formas de lidar com a complexidade e a incerteza da criação acadêmica. E lembra do papel das bibliotecas públicas no processo — ainda importantes hoje, quando a promessa do “ter tudo ao alcance de um clique” não se concretizou como esperado.
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Bom fim-de-semana!
Como sempre, para falar comigo é só me responder esse email ou deixar um comentário:
Tô com essa animação pra ver a Kim Gordon amanhã, mulheres que mudam nossa vida Pq não se dobraram. ♥️ Será que a gte se esbarra?
como deve ter sido legal fazer sua propria curadoria de CDs indo em lojas. minha nostalgia é fazer uma curadoria de 20 musicas para minhas playlists caberem no mp3 de 128mb haha agora com o spotify que faz listas pra gente tudo fica tao despersonalizado...