Para ouvir hoje: “Cool About It”, das Boygenius.
Essa coisa da crônica
Essa semana, num grupo de WhatsApp de amigas que escrevem aqui no Substack, o tema é a crônica. Quem a escreve, quais são seus temas, formatos e espaços. Não é um enterro, como o que se ensaiou na coluna do escritor Julian Fuks1 no portal UOL essa semana. É mais uma tentativa de defesa da crônica que amamos, produzimos e consumimos. E que está viva e bem, obrigada.
Porque enquanto a tradicional e brilhante crônica brasileira, veiculada em jornais e revistas, míngua por falta de espaço, a sua irmã caçula, melhor versada na pós-modernidade digital, brilha muito na internet.
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Crônica é um gênero flexível que pode ter definição meio elusiva, o que justificaria uma constatação imediatista, tipo “a crônica morreu”. É um texto normalmente breve, comumente ligado ao cotidiano, quase sempre se valendo da cadência da língua falada. A crônica pt-br, muito próxima da grande imprensa ao longo de décadas, deu grande visibilidade a uma lista de gigantes que inclui Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector e os Rubens Braga e Fonseca.
Mas melhor deixar a definição para quem entende delas. Como Antonio Candido e Alexandre Eulálio2:
“(A crônica) Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor Antonio Candido observa: ‘Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu’. Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: ‘É nosso familiar essay, possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época’. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.”
Se formos pensar nesses termos, basta procurar fora dos jornalões (respirando por aparelhos) e portalões (dependentes de caçar cliques) para encontrar toda uma saudabilidade de textos afáveis, pessoais, sem cerimônia e pertinentes.
A Revista Gama, por exemplo, tem Marilene Felinto e Isabelle Moreira Lima no cast de colunistas-cronistas que semanalmente escrevem sobre assuntos que vão de questões de raça a histórias de vinhos. A crônica cultural está viva e bem em sites de caráter noticioso como o Farofafá3 do experiente repórter Pedro Alexandre Sanches. Agora, além disso, muita gente tem usado o formato newsletter para escrever diretamente para quem quer ler, sem atravessamentos de editores, na mesma energia da literatura blogueira do começo dos anos 00. Um bolo onde há muitas crônicas, como as minhas.
A qualidade e pertinência do que é publicado de forma alternativa/independente varia, é claro. Mas a ‘cena’ de newsletters, formada por cronistas (mas não só!) já é diversa o suficiente, em seus temas e formas, para incluir os talentos de Carol Bensimon, Aline Valek, Stephanie Borges e Ronaldo Bressane.
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Confesso que sou meio apegada nessa coisa da crônica. Usei muito, na escola, os livros da coleção Para Gostar de Ler. Para quem não conhece: criada nos anos 1970 pela Ática, a série intencionava facilitar o acesso de ginasianos e colegiais aos textos da literatura moderna brasileira4. Foi pensada para ser adotada em sala de aula mesmo e teve primeira tiragem com o tema “crônicas” e textos de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade em 1977, ano em que nasci. Essa primeira tiragem teve cem mil cópias, e o sucesso da coleção, com 47 volumes, se manteve por décadas. A Para Gostar de Ler apresentou contos, poesia e crônicas para gerações de jovens entusiastas. Foi com esses livrinhos que aprendi que histórias, mesmo as que a escola me obrigava a ler, podiam ser divertidas e engraçadas. Aprendi a gostar de ler. E foi com eles que comecei a reconhecer os nomes dos nossos “sabiás”5, que também figuravam nas revistas Manchete que meu avô assinava. Passei a identificar a crônica nas páginas finais da Vejinha que minha mãe recebia e, mais tarde, a persegui-la no que me meti a escrever: essas mesmas coisas do cotidiano, do pessoal e das relações com aquilo que é banal ou extraordinário na vida de todo mundo.
Viva a crônica :)
Outras crônicas
Para ouvir: “Três Visões Sobre a Crônica”, especial com Guilherme Tauil, autor de “Vento Vadio: crônicas de Antônio Maria” e editor do Portal da Crônica Brasileira6. Abaixo, o primeiro de três episódios:
Para ler: “Mas Em Que Mundo Tu Vive?”, do gaúcho Jose Falero, cronista que não é nem carioca e nem branco, e é uma das melhores leituras dos nossos tempos. Já foi dica no lançamento, em abril do ano passado, leia nessa edição
Para ver: "Mrs Parker and the Vicious Circle"7, cinebiografia caretinha da Dorothy Parker que vale pela Jennifer Jason Leigh no papel principal. É um filme de pouco sucesso, mas dá pra ver no Youtube. O que Mrs Parker escrevia era crônica? Não formalmente. Mas ela deixou contos, roteiros, poemas, cartas e muita crítica de teatro e literatura. De muitas formas também foi uma tremenda cronista do seu tempo.
Girinho de newsletters
🏋🏼♀️ A Marie (pra mim, a melhor escritora da geração dela) finalmente nos abençoou com sua presença no Substack. Chama Não Prometo (absolutamente) Nada e nessa edição fala sobre essa coisa da maromba, e sobre Mishima. 10/10.
⌛A Jess Correa falou na Chocolatinho sobre essa coisa da paciência. Tá falando sobre ter paciência com o próprio corpo e o próprio tempo, mas serve pra tudo.
🤳 A flows comentou na edição de hoje sobre essa coisa da loucura do protagonismo, num texto que conversa bastante com o tema de hoje — só porque não estou enxergando algo, deixou de existir?
👜 Quem viveu os anos 00 precisou encarar termos como it bag , que a edição de ontem da newsletter do FFW me lembra que ainda existe.
💅 Falando nessa coisa de moda, a brilhante Amy Odell comenta no Back Row sobre a Grande Descoberta da Indústria de Entretenimento desse mês: a de que mulheres também consomem.
🎵 Para quem chegou até aqui
1, 2, 3, 4… O Garotas Suecas levou dez anos (e uma pandemia) entre “Feras Míticas” e esse novo álbum, que chega anunciando que "não tá tudo bem", primeiro single, lançado em junho passado. Mas o disco novo, por mais que gestado em anos de desencanto geral, evita “usar palavras como pandemia, presidente, planalto”, como contam os irmãos (e meus antigos vizinhos!) Tomaz e Nico Paoliello nessa entrevista para o Mad Sound.
Eu gosto muito do Garotas, banda que já foi quinteto (e não é só de mulheres, sequer é sueca) e que tem duas décadas de vida no mundinho indie pt-br, incluindo esse hiato de lançamento entre um álbum e outro. A banda tem um som assim "solar” (pra usar um adjetivo bem clichê) e sessentista-dançante. Me remete a um tempo de uma cena musical muito efervescente e otimista. E ouvir o disco novo também me fez pensar que há certa efervescência e otimismo rolando lá fora. Mas talvez agora permeado um inevitável desencanto — afinal, não vivemos anos fáceis.
Ouça “Gentrificação", última faixa, que narra com precisão o drama do artista pobre tentando continuar a viver em bairro descolado de São Paulo.
Bom fim de semana :)
O infinito de Vanusa (Farofafá)
A história da coleção Para Gostar de Ler (portal Rubem)
“Os Sabiás da Crônica” (Augusto Massi, Ed Instante)
Guilherme Tauil é o novo editor do Portal da Crônica Brasileira (Terra Entretê)
nossa coração quentinho agora que você tocou no assunto que mais amei nos últimos anos.
meu tcc foi um livro de crônicas futebolísticas, e o que eu li pra fazer o trabalho me deixou maluco haha
fiquei tão lélé que, acredito, me tornei um cronista. ao apresentar o trabalho final abri um medium e agora migrei pra cá.
fui transportado e transferir meu amor literário para o gênero de um jeito indescritível, sempre que posso apresento algum ou alguma cronista pras pessoas.
e por fim, até arrisco dizer que a clarice cronista era melhor que a contista (mas é segredo tá, não conta pra ninguém que eu disse isso)
viva a crônica!
e a crônica de internet principalmente, esse formato que estamos costurando aqui, na mão de tanta mina talentosa que arrasa no formato. ✨️