🔘 Tá Todo Mundo Tentando: escolher
Oi,
Essa é mais uma edição da Tá Todo Mundo Tentando, uma newsletter sobre aquelas coisas que tá todo mundo sempre tentando fazer — às vezes conseguindo, às vezes não.
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A edição de hoje é inédita e trata de algo que tem estado muito na minha cabeça: quem realmente pode escolher algo na vida? Uma pesquisa diz que uma pessoa adulta toma cerca de trinta e cinco mil decisões por dia1, entre banais (o que colocar no prato no bufê do restaurante por quilo perto da firma) e cruciais (o momento de atravessar a rua).
Imagino que esse número contemple decisões como filme para ver no streaming (aliás: qual streaming?), podcast para ouvir, ídolo para seguir, cor de copo térmico para comprar — pequenos poderes que nos distraem de várias outras coisas mais importantes.
Por exemplo: poder escolher trabalhar menos, poder escolher dormir em silêncio, poder escolher atualizar exames de saúde todo ano, poder escolher ter pique para fazer exercícios, poder escolher usar um transporte público eficiente e barato.
Não tô aqui para te dizer para parar de comprar blusinhas. Mas tô aqui para te perguntar, no melhor estilo Carrie Bradshaw escrevendo na frente da janela2: no quê você está deixando de prestar atenção enquanto está ocupada demais com trabalho e consumo?
Boa leitura e até sexta que vem,
g.
Fazer escolhas
No mundo contemporâneo, poder fazer escolhas é sinônimo de liberdade. Não tá errado. Só que poder decidir entre um modelo de celular e outro, entre uma plataforma de streaming e outra, entre pizza ou sushi não é a essência da autonomia e não garante a liberdade de ninguém. Mas isso você já sabe. A questão é que aposto que você, como eu, às vezes esquece.
No episódio “The Glut of Choice”, do podcast Critics at Large3, os apresentadores (que também são minhas amizades parassociais) discutem como a abundância de escolhas do modo de vida contemporâneo mascara a brutal escassez de opções reais.
Eles começam rindo das variações de tons de branco de uma marca chique de tintas para parede com nomes como “Sliper Satin” ou “Dimiti” — o próprio conceito de tinta de parede premium é absurdo, claro, mas vamos deixar isso de lado por enquanto. O assunto logo parte para algo mais sério: a escolha de um plano de saúde para o bebê recém-nascido de um dos âncoras.
Você, que deve estar me lendo no Brasil, sabe que poder fazer essa escolha já é um tremendo privilégio. Poder pagar por saúde privada é um luxo que muita gente sequer considera. Mas, nos EUA, que não tem SUS, essa escolha sai do campo da opção. É uma necessidade que expõe uma falha sistêmica: se a escolha é obrigatória, é porque não há uma alternativa pública universal e gratuita. É uma suposta liberdade de escolha que depende da ausência de direitos para existir.
O episódio é baseado no livro da pesquisadora Sophia Rosenfeld, ”The Age of Choice”4 que investiga como a liberdade moderna foi reduzida à capacidade de escolher. Ela argumenta que, historicamente, a escolha se tornou um pilar do liberalismo e do capitalismo, e que essa ênfase na decisão individual esconde desigualdades estruturais. A abundância de opções em algumas esferas da vida, disponível para algumas pessoas, mascara a falta de opção em outras esferas para muitas outras pessoas.
Hoje, a escolha costuma ser vista como sinônimo de liberdade. Na maioria do mundo, especialmente nos Estados Unidos, ter mais oportunidades de escolha e uma maior variedade de opções são objetivos políticos, pessoais e econômicos comuns. Somos incentivados a refletir sobre nossas preferências e, em seguida, selecionar entre um leque de possibilidades que abrange quase todos os aspectos da nossa vida — desde o que comprar, onde morar e quem amar, até qual profissão seguir e no que acreditar.5
Sophia Rosenfeld, ”The Age of Choice”
Você pode escolher entre centenas de delivery para pedir de noite quando chega do trabalho, mas não pode quantas horas por dia precisa trabalhar para pagar por isso. E aposto que também não pode escolher se prefere trabalhar de casa ou remoto. Nós podemos escolher entre inúmeras redes sociais, mas não escolhemos como essas plataformas manipulam nossa atenção e usam nossos dados. Podemos escolher entre uma quantidade absurda de quadradinhos de filmes e séries em serviços de streaming — e mesmo assim, de alguma forma, aquilo que você gostaria de ver não está lá. No final, tanto faz: o delivery, o feed, o streaming. A chance é que tudo vai acabar te cansando. Você vai querer escolher outra coisa, em outro momento.
Por quê? Porque você pode. E você acha que deve.
O paradoxo da escolha é um problema antigo. Os gregos (sempre eles) dão um exemplo claro na parábola da Escolha de Hércules6: diante de dois caminhos, um curto e prazeroso e outro longo e desafiador, Hércules escolhe aquele o da virtude.
Mas no mundo contemporâneo, a ilusão de escolha nos leva a caminhos predeterminados que parecem infinitos enquanto são essencialmente os mesmos. O consumo se torna um fim, num ciclo eterno de decisões sobre qual versão de um mesmo produto vamos comprar, ter, experimentar, exibir, usar, descartar, começar de novo.
Enquanto você coloca energia decidindo entre perfumes, eletrônicos e barrinhas de proteína, no que você está deixando de pensar? Quanto do seu tempo está sendo absorvido por um processo decisório que, na prática, é insignificante? Quantas etapas de rotina de skincare são suficientes? O problema não é o excesso de opções: é a dificuldade de fazer escolhas sensatas.
Falta oportunidade para escolher tempo de descanso, bem-estar e acesso igualitário a serviços essenciais. Enquanto seguimos entretidos, esquecemos de perguntar por que as escolhas que realmente importam não estão ao nosso alcance.
E, claro, deixamos de brigar por elas.

📻 É Sobre Isso: é possível prestar atenção?
No novo episódio do É Sobre Isso, eu converso com meus colegas de bancada Catarina Cicarelli,
e Guilherme Pinheiro sobre os impactos da falta de atenção nas nossas rotinas. E tentamos entender quem ganha com a nossa distração e de onde veio essa coisa de que tudo sempre tem que estar a favor do entretenimento?É claro que não tem uma resposta única, clara ou fácil. Mas não estamos aqui para ter respostas e sim para fazer perguntas. E rir um pouco. E contar anedotas.
O É Sobre Isso é uma produção da Ampère Audio e da Beet House, com pesquisa e roteiro de Alexandre Maron, produção de Anna Maron e edição de
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Bom fim-de-semana!
Como sempre, para falar comigo é só me responder esse email ou deixar um comentário:
Essa cifra de 35.000 decisões é frequentemente citada em fontes populares, tipo LinkedIn, mas não é apoiada por literatura sólida. Porém, o conceito de fadiga de decisão é bastante estudado na psicologia.
Nós somos melhores amigos, mas eles ainda não sabem:
Escolhi baixar uma prévia na Amazon e esperar uma tradução para português brasileiro, se alguma editora escolher comprar e publicar por aqui.
No original: "Today choice is often taken to be a synonym for freedom. In much of the world, but especially in the United States, having both more occasions to make choices and more options to choose from are familiar political, personal, and economic goals. We are urged to consider our preferences and then to select from menus of options covering almost every element of our lives, including what to buy, where to live, whom to love, what profession to practice, and even what to believe." Fonte.
Maria Antônia Couto da Silva, Doutoranda pelo IFCH/Unicamp: “Hércules entre o Vício e a Virtude e Alegoria da Sabedoria e da Força” (PDF na Unicamp)
Não existe livre arbítrio no sistema capitalista. Quem é cronicamente online há mais tempo vai lembrar daquela clássica imagem mostrando que centenas de grandes marcas estão interligadas a alguns conglomerados, destacando-se Unilever, Nestlé e Coca Cola. A sensação de escolha infinita de consumo cansa e ainda frustra, porque nunca teremos todas as opções mesmo. São só ilusão controlada por meia dúzia de pessoas no Norte Global. O que fazer então? Só de esse tema ser levantado aqui já é uma luz e o dever como leitor é espalhar a palavra do questionamento.
Mandou bem demais nessa reflexão, amiga. Escolher itens de consumo não é liberdade nem autonomia. É distração - das mais perversas, talvez. Porque te deixa querendo sempre mais.