Tá todo mundo tentando: globetrotting
A moça do outro lado do vidro do carro não disse, mas eu ouvi: go home, gringo de mierda
Para ouvir lendo ▶️ “Englishman in New York” do Sting. Antes de começar, podemos falar um pouco sobre como o Sting é incrível? Sempre muito cool, seja como líder de gangue no “Quadrophenia”, jazzista na fase “Bring on the Night”, dono de pub em filme do Guy Ritchie ou ativista com o Raoni no Amazonas, o Sting é um cara que se deu bem em tudo que fez (talvez nem tanto na versão de “Duna” do David Lynch, mas não é culpa dele). Meu Sting preferido é o da fase adulta, cantando sobre ser “a legal alien”, um expatriado que mantém os próprios hábitos e passa por local só até abrir a boca. “English Man in New York” foi escrita como trilha sonora para o filme de mesmo nome, um biopic sobre os anos do escritor inglês Quentin Crisp na América, com solo de sax do Branford Marsalis, parceiro frequente do Sting nas incursões musicais depois do Police.
Globetrotting

Não posso dizer que viajei muito — o que é “muito”? Mas viajei mais que a maior partes das pessoas. Ando pensando nisso, talvez pelos textos recentes, talvez por uma pensata da Olga Tokarczuk no “Escrever É Muito Perigoso":
Ando pensando em por que parei de viajar, em por que eu viajava, em como eu viajava. Falando assim parece um passado distante, mas foi ontem. Eu gostava, sempre, da solidão e das paisagens. Gostava de flanar, de tomar café, de olhar coisas que não tinha dinheiro para comprar, de voltar para o quarto do hotel e escrever longos emails que mandava para um seleto grupo de amigos — foi assim que comecei. Gostava das oportunidades de respirar outras ideias, cores e gostos, de raramente encontrar confirmação sobre algo que pensava, de ser constantemente lembrada de como o mundo é grande.
Reclamar do privilégio de ter viajado seria uma ignorância. Mas estava frequentemente insatisfeita com como ia viajando. Essa coisa de depender de cicerone para visitar rapidamente o que outros julgavam digno de experimentar, apressadamente subindo e descendo de vans, isso não me satisfazia. Me frustrava. Minha ideia de ser um tipo de Tintim mulher e latina ficava perdida na falta de mistério dos cada vez mais maçantes posts de blog.
Mas o pior era a difícil, porém inevitável, constatação de que muitas vezes eu apenas não deveria estar ali. Até um dia em que, atravessando um vilarejo andino e tentando fotografar jovens locais saindo da escola em roupas típicas, vi uma garota ficar tão irritada que deu um soco no vidro do carro. Ela não disse, mas eu ouvi: não sou um produto, go home gringo de mierda.
Eu, que não sou gringa, me senti gringuissima naquele momento. Esse não era o jeito certo de entrar nas vidas das pessoas. Eu estava sempre pegando algo precioso e deixando migalhas de volta. Usando a vida do outro como se fosse meu life style. Nivelando tudo por baixo nas redes sociais.
Na minha última press trip, em 2019, já tinha certeza que a indústria do turismo era uma parada nociva, com raras exceções, e piorada pelo hype do travel blogging. Anos investindo tempo e recebendo privilégios que só beneficiavam os ricos, aqueles que exploravam os explorados de sempre.
Enquanto via as pessoas que, como eu, escreviam sobre “destinos” e “experiências” dando lugar para quem que já tinha "pivotado para vídeo”, foi ficando claro que meu tempo e lugar tinham passado. E tudo bem. Porque o que eu queria era uma coisa antiquada: escrever. Não era correr atrás de page views, não era negociar banner por CPM, não era aprender a editar shorts, não era continuar na corrida sem fim por atenção e engajamento.
E quando os cachês, que já estavam raros, minguaram, e as revistas e os cadernos de turismo deixaram de existir, minha própria pivotagem foi arrumar um emprego das nove as seis e cuidar da minha vida IRL, perseguindo algo que tinha ignorado demais até então: estabilidade. Subir pirâmide na Guatemala (been there!) ficou menor do que ter salário garantido todo dia cinco, estar em casa com meu filho e aprender a escrever com minha própria voz.
Falo/escrevo como se fosse tudo passado distante. A verdade é que não faz nem dez anos que a MTV acabou e só seis anos desde que lancei o “Mas Você Vai Sozinha?”. As coisas passaram com tanta urgência na última década que tudo parece distante. O próprio biênio da pior fase da pandemia parece outra vida, e foi ontem. Minha vontade de viajar, claro, nunca passou. Continua aqui, fortíssima, guardada numa mala sempre prestes a arrebentar e que eu guardo no topo do armário para levar comigo quando puder viajar nos meus próprios termos. E a escrever sobre as viagens, claro, com a segurança que a Gaínha do passado não tinha.
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Vc está certa, Sting é muuuito good vibes, e eu adoro ver a apresentação dele no NPR tiny desk. Sobre as viagens, meu orçamento nunca comportou nada assim tão ousado, então penso muito, já que tenho a velha e boa estabilidade, em tirar pequenos Sabáticos e flanar pelo mundo, aprendendo novos idiomas. Por enquanto é sonho... rsrs
Me identifiquei quase por inteira nessa newsletter com exceção de que me falta ainda alcançar a estabilidade, o salário pingando mensalmente na conta, o trabalho das 9 às 5h. Talvez esse seja o lugar que quero estar, mas não quero estar. Batendo cabeça à toa? Talvez. Mas confesso, seu texto me emocionou e estou chorando aqui. <3