Tá Todo Mundo Tentando: melhorar
Paisley Underground, lembranças do isolamento e um girinho de newsletters.
Para ouvir hoje: "What's She Done To Your Mind" do Rain Parade, uma banda pouco falada que fez parte do “Paisley Underground", uma (sub) cena de bandas indies (na época chamava “alternativo") de Los Angeles. Tem uma coisa bem sessentista, bebendo daquelas bandas todas que foram apagadas pelo über-sucesso dos Beatles, tipo Birds. Mas tem também um desencanto, certa psicodelia dark, que nos lembra que estamos nos anos 1980. Pra quem gosta de REM e Mazzy Star. Tá na playlist da Tá Todo Mundo Tentando no Spotify.
Já fui melhor nisso
Não é meu melhor dia. Estou irritada por achar que não me preparei direito para algo que sei que sei fazer bem. Tenho um apagão nervoso logo no início, com a câmera já ligada registrando minha incapacidade de lembrar o que tenho pra falar. Me distraí com o fato de ter duas câmeras e não saber onde olhar. Espero a diretora falar no ponto, assim quem sabe o fone, gordo demais dentro da minha orelha pequena, sirva pra alguma coisa, mas só ouço um ruído agudo. Dura segundos, mas é tempo suficiente para uma das colegas de painel me olhar espantada com cara de “vai gata, acorda!”, o que acaba sendo minha deixa. Falo meu nome, os nomes das colegas de palco e entrego pra deus tipo legal-gente-falem-aí. Só então lembro que não disse o nome do evento ou o assunto do painel, informações que sei de cabeça, e que mesmo assim estavam anotadas na pauta que preparei com dois dias de antecedência no pequeno caderno que tenho em mãos. Lembro então que estou com fome e não almocei — pipoca é almoço?
*
Cheguei adiantada. O nosso é o primeiro painel do evento e por isso deve ser pouco visto e por isso eu estou tranquila. Mas também por isso a produção está nervosa. Desço a pequena rampa da entrada e me deparo com um clima elétrico de bastidores. A Produtora Responsável me encontra na porta para lembrar de limpar os pés num tapetinho úmido e exibir o pulso para medição de temperatura. Ela me entrega uma pulseira e me avisa que posso aguardar em uma pequena sala de espera improvisada para não-notáveis — vejo que há uma outra sala, mais na frente, com cooler de bebida e fundo pra fotos com logotipo de patrocinador, para as Artistas.
Uma das convidadas do painel, a Curadora de Prêmio Literário Relevante, já chegou. Me apresento de longe e sento perto dela, mas não muito. Usando máscaras, engatamos um papo fácil, comendo a pipoquinha de pacote da marca de produtos industrializados-porém-saudáveis que patrocina o evento. A Curadora quer tirar a máscara para conversar, mas não pode. Ela é ótima e conta que anda falando com escritores e por isso tem a sensação de que nunca se produziu tanta boa literatura no Brasil, coisa que anotei na minha pauta para puxar pro papo no palco depois. Não contei que também escrevo coisas, porque teria que contar que essas coisas ficam estacionadas em cadernos e no computador. E nem comento que já publiquei um pequeno livro de aventuras de viagem, do qual só me orgulho quando rende dividendos semestrais bastante decentes. Fico satisfeita de ouvir a Curadora contar que também anda com dificuldades para ler, que não consegue se concentrar sequer nos livros que deve ler como obrigação profissional. Ela diz que tem buscado reler livros que amou na juventude como forma de inspiração, e que aí sim a leitura flui. Não pergunto que livros são esses para deixar o assunto para o painel. E também porque prefiro que ela continue a falar, enquanto na minha cabeça penso se poderia ter sido como ela, talvez se eu tivesse estudado eu fosse mais como ela, ela que fala tão bem sobre livros e ideias e coisas interessantes, que não é séria ou chata, é levemente autodepreciativa fazendo confusão com os sabores dos pacotes de pipoca, rindo, diz que voltou a nadar e que agora bebe todos os dias a partir da hora do almoço, quando entra na cozinha para preparar comida. Eu quis comentar que também bebo todos os dias, talvez para mostrar que, olha só! álcool! temos algo em comum!
*
Chega mais uma participante do painel, a Editora-Executiva de Revista de Life Style. Ela usa uma máscara linda de cetim de seda em cor de pérola, veste algo azul e verde que parece linho, tem os cabelos grisalhos cacheados e repartidos de lado. A Curadora tem os cabelos grisalhos também, cortados curtos de um jeito moderno. Fazemos uma escadinha de 40, 50 e 60 anos e me sinto muito confortável com elas, mais do que com as minhas amigas de 30, ou menos. A Editora elogia meu cabelo, que estou deixando crescer pela primeira vez desde a adolescência, e eu aceito sem modéstia: está bom mesmo. Exibo minha própria mecha grisalha do lado esquerdo do rosto, e ela diz que é charmoso. Pergunto como está a Revista, ela conta que não consegue mais escrever sua coluna fixa, que era sobre a vida da mulher 40+ em São Paulo, porque agora tudo parece muito absurdo e meio banal. Comenta que a maior parte das colunistas sofre do mesmo problema e que ela não insiste, mas entrega o trabalho que é necessário.
Quando falta pouco para subirmos ao palco sem platéia, onde o painel será captado e exibido online, outra Produtora aparece e começa a me dar instruções de como receber perguntas da audiência no WhatsApp. Faltando literalmente cinco minutos para nossa entrada, chega a última panelista. É a Apresentadora de TV, linda num vestido envelope estampado, os pés bem cuidados dentro de um par de sandálias de tiras.
*
Todas elas estão muito elegantes, vestidas de forma adulta. Eu, bom, eu estou de jeans, camiseta, jaqueta de couro e Converse sujos, e sei que mais tarde terei algum pesadelo sobre me sentir fora de lugar, que levarei isso pra terapia e que comentarei com uma amiga que dirá algo inócuo como "imagina, sua jaqueta é linda". A Produtora volta, explica que só poderemos tirar as máscaras no palco quando estivermos posicionadas, e nos leva adiante, passando dentro de uma cozinha, através de uma escadaria e então por uma porta que dá na platéia do teatro, tomada pela equipe e por equipamentos da produção.
Recebo as instruções da Diretora do Evento: tem ponto eletrônico, fala devagar, deixando uma pausa entre as apresentações, que é pra câmera conseguir a legenda com os nomes e créditos. Ok? Ok, claro, tudo bem, entendi tudo, já fiz isso antes. No palco, as duas Mulheres Empresárias e Criadoras do Evento esperam acabar a vinheta de abertura e fazem um curto discurso de boas vindas. É truncado — quando uma tenta passar a outra manda de volta, parece que faltou ensaio, mas não tô aqui para culpar ninguém, lembro que tudo sobre esse ano é improviso e coragem de que vamos chegar do outro lado. Mas não gostaria de estar no lugar delas. Gostaria, sim, de trocar de lugar com qualquer uma das minhas colegas de painel, que estão sentadas esperando começar enquanto a produção repete as informações sobre quando chamar perguntas da audiência. Ninguém sabe dizer qual é a câmera para onde devo olhar.
Três pessoas diferentes, todas sem luvas, tentam colocar o ponto eletrônico no meu ouvido e mesmo assim não fica, porque ele é grande demais, o cabo puxa nas minhas costas, a fita não segura. Percebo que está sujo, talvez de outras orelhas. Começo a pensar se é possível pegar Covid pelo ouvido, mas o que absorvo é o nervosismo das pessoas. A Curadora quer saber se pode agradecer um patrocinador, imagino que sim, mas preciso perguntar pra Diretora, mas ela está longe e o ponto tem chiado e eu entro naquele lugar isolado que todo ansioso conhece. A única coisa que posso fazer, a partir daqui, é improvisar e esperar o melhor.
*
O que me salva, no final, é minha vontade de não passar vexame na frente de três mulheres que admiro. Da audiência, nem lembro. Ninguém parece se importar. O desconforto passa, o assunto flui, as perguntas da audiência chegam, o relógio começa a andar e quando vejo a produção já está nos tirando do palco e esterelizando as poltronas para o próximo painel, que tem hora pra começar, então vamos rápido, por favor, obrigada. Continuamos a conversa com simpatia e gentileza, bebo uma garrafa inteira de água em um gole só, a Produtora começa a discutir com alguém por algum motivo que não acompanho. E começo, enfim, a entender: ninguém se vê há meses, todos queremos conversar e não sabemos mais como funciona. Não tem ensaio que dê conta. Quero ir pra algum lugar com luz, mas a Produtora continua envolvida numa discussão, a Curadora continua querendo falar com a Diretora do Evento, a Editora e a Apresentadora continuam querendo conversar por debaixo dos psiu! de um Assistente de Direção. Finalmente, alguém nos leva escada abaixo, por dentro da cozinha e de volta aos sofás onde tem mais pipoca, e onde receberemos envelopes com nossos nomes e sacolas com brindes.
Para isso, temos que ir individualmente dentro de outra sala para abrir os envelopes, conferir o pagamento simbólico e bem-vindo, assinar um papel preenchendo dados pessoais numa caneta quedeve ser limpa com lenços desinfetante a cada uso. Eu assino, recebo meu dinheiro e meus brindes, e volto para ouvir a Apresentadora contando sobre ter tido uma manifestação grave da doença. Ela diz que ficou vinte dias de cama, incapaz de levantar até para tomar banho, e sobreviveu com ajuda do marido. Os médicos não sabem se ela pode pegar de novo, porque existem relatos de gente pegando a doença duas vezes. De qualquer forma, ela continua sendo vetor, continua podendo transmitir. Todas podemos. Ficamos em silêncio para absorver a informação, e de repente eu quero muito sair dali para uma próxima etapa do meu dia, qualquer que seja.
*
Na sacola tem uma porção de brindes tipo creme hidratante, batom, caderno, outra garrafa de água e mais pacotes de pipoca. Decido que a pipoca sabor azeite e pimenta será meu almoço e que a ajuda de custo vai pagar uns drinks no bar do meu amigo, ali perto, onde não tem ninguém e eu posso sentar no balcão e beber e ouvir música e conversar de longe — sem neuroses ou perdigotos.
Giro da Newsletter
🧜♂️ Muito boa a Conforme Solicitado, que eu não conhecia e que está na 50a edição. Essa semana, um comentário sobre reuniões com o qual todo mundo que trabalha vai se identificar mais do que um pouquinho.
🐦 A Babi Carneiro fala sobre sair do Twitter e eu acho que ela tem TODA a razão: “estar no Twitter parou de fazer sentido". Nunca teve muito sentido, mas agora tem ainda menos.
👉 Essa semana o Substack me apresentou a Doses de Tiquira da Luisa Pinheiro que nessa edição chamada Corpo e Espaço fala sobre (várias coisas e também) repercussões do isolamento e retomar trabalho presencial.
🗞️ A Lívia Vieira fala aqui na Farol sobre as muitas vias fechadas e as possíveis saídas para o jornalismo local. Em tempos de IA há, claro, mais perguntas que respostas.
🍸 Já recomendei várias vezes a The Spirits, uma newsletter inglesa sobre drinks que há anos é uma das minhas favoritas. Na edição da semana passada o autor, um jornalista freelancer de Londres chamadon Richard Godwin, fala sobre o Martinez, um Manhattan que leva gin no lugar de bourbon. Alguém sabe onde encontro?
🎵 Para quem chegou até aqui
Mazzy Star e"Fade Into You” no 60 Songs That Defined the 90s, de onde eu tirei a referência ao Paisley Underground lá no começo dessa edição. Esse é O PODCAST para nerds musicais que cresceram nos anos 1990, ou para quem tem um interesse profundo na sonoridade da década. Não estranhe que o apresentador leva quase meia hora para citar a música: é um caminho de rato mesmo. Mas poucos você vai entendendo o que o Low tem a ver com Mazzy Star e, mais importante, a hora que você finalmente ouve a Hope Sandoval cantar “I wanna hold the hand inside you” o impacto é tão forte quanto aquele da primeira vez que você ouviu “Fade Into You” na vida — mesmo que você não lembre mais disso. Se não foi assim, desculpa, você não estava prestando atenção.
Outra coisa que apareceu bastante nas respostas da pesquisa (que foi feita com uma seleção restrita de leitores com taxa de abertura de quase 100% das edições) foi uma vontade de “ver mais conteúdo sobre música". Taí :) Em pílulas, mas só coisas que eu gosto, e só pra quem lê até o final!
A sua forma de narrar esse texto (especialmente) me capturou completamente. To impactada!
Então, você cita Mazzy Star e eu me transporto para o dia em que a ouvi pela primeira vez! 😍