Para ouvir lendo: “Here Comes a Regular", do Replacements em cover da Cat Power (Youtube / Tidal)
Todo mundo conhece essa pessoa: você comenta que, sei lá, viu uma série, e recebe de volta não uma pergunta sobre como é ou o que achou, sabe, aquilo que rola numa conversa comum, mas algum comentário que leva o foco de atenção direto pro interlocutor. Pode variar entre deselegância, algo como (“ah Fulaninho (nome do protagonista no diminutivo) me contou que estava fazendo”) ou um exuberante senso de autoimportância delusional (“ah você sabe que a roteirista chefe é minha amiga e que a personagem principal é inspirada em mim, né?”). É aplicável a todo círculo social. Você também conhece alguém assim. Às vezes até você é assim. Eu sou.
A Flows pegou no ponto lembrou que conversa nem sempre é sinônimo de diálogo chamou essa (má prática) de “sequestro de conversa”. Resume com exatidão esse feeling de ser coadjuvante de um filme em que a ação tem que voltar o mais rápido possível para o protagonista, invariavelmente alguém tão embevecido consigo mesmo que não consegue deixar de pontuar como aquilo que você está falando (ex: receita de cuscuz) pode ser melhorado se for sobre ele, de preferência achando um mote para deixar claro que a experiência dele/a é mais interessante que a sua (ex: “no fim do ano eu fui pra Trancoso com um chef famoso que faz um cuscuz melhor do que esse aí que você falou” — meudeus do céu, isso é TÃO culturete rico paulistano).
A egolatria descontrolada é parte da nossa experiência, pelo menos em alguns momentos, e nem sempre é maligna. Como a amiga que nunca transa com ninguém e de repente transa e só consegue falar sobre transar porque pra ela de fato é uma vitória. O problema está em ser assim o tempo todo, não conseguir se soltar dessa necessidade de conduzir a narrativa. É a Epidemia de Protagonismo.
De fato, vivemos uma pressão para sermos protagonistas de tudo. Sempre. O tempo todo. Um estado do capitalismo selvagem de monetização da própria personalidade, em que se luta não pelos quinze minutos, mas por literais segundos de fama, na expectativa de conseguir algo em troca. Todo mundo tem que ser uma personalidade da mídia, porque é assim que se garante relevância, like, mimo, campanha, book deal, temporada de podcast e, em última instância, até a breve sensação de ser amado, um afago no ego. Nessa, tem um monte de gente boa no que faz que acaba passando batido por não saber se adequar a esse Se Vender Modo Full Power que virou a vida, tanto a privada quanto a pública.
Quando eu entro em casa e boto um moletom véio e vou deitar com meus bichos no sofá que tá meio sujo e vou jantar algo requentado de ontem, eu não preciso ser protagonista de nada além da minha própria vidinha mundana. Mas, ah, é insuficiente. É preciso continuar alimentando redes, seguimores e contatinhos, então bora filtrar essa realidade banal para transformar o momentinho eu-comigo em algo charmoso, de preferência autêntico, de preferência com posicionamento (ser isentão não pega bem) e que possa render algumas unidades de aplausos, como se o meu momento sofá-moletom fosse parte de um espetáculo porque, afinal, é isso que todo mundo faz. Sim, eu e você também. A gente tem medo de desaparecer, de não ser suficiente, mesmo quando deveria desaparecer um pouco.
A forma como eu tenho lidado com isso é me deixar desaparecer e parar de perder tempo numa batalha que está sempre perdida. E aceitar que, por exemplo, não preciso participar da conversa se não tenho algo a dizer. Aceitar que nem sempre é preciso ter algo a dizer. Isso tem me dado algum espaço para lidar com coisas que me são realmente necessárias, tipo dormir doze horas quando dá vontade — meu jeitinho, me deixa! Tem me feito um bem danado lembrar que, na verdade, eu não importo.
O que importa, sim, e vai continuar importando mesmo quando eu não estiver nas redes, é o que escrevi e não uma temporada de podcast que desisti de manter lá em 2019, o arquivo de Stories salvo no perfil de Instagram. Tudo é descartável. Tudo menos meus cadernos rabiscados ao longo de mais de vinte anos, que guardo numa caixa de madeira no escritório, sempre muito high na minha própria luz — um dia eu vou morrer e tudo isso será importante!
(Corta para meu filho no futuro abrindo um caderno francês, lindo e caro, escrito em caneta tinteiro numa caligrafia belíssima, e encontrando uma lista de coisas para fazer no dia: academia, feira, farmácia, locução. Kafka mandou benzaço.)
📒 Narrativas de viagem
Em abril tem turma nova do meu amado Daniel Nunes, que além de viajante intrépido também é um professor e tanto. Essa é uma extensão do curso de escrita de viagem que o Daniel, repórter de viagem profissional, ministra desde 2016 na Cásper Líbero, e é aberta a interessados de todas as idades e formações — não é necessário ter experiência em escrita. O foco é ensinar o uso de técnicas do jornalismo literário para criar relatos de viagens e experiências. Fale com ele pelo Instagram abaixo ou faça a inscrição direto no danielnunes.co.
#FollowFriday
Hoje não é uma newsletter-amiga e nem uma @ específica, mas essa reportagem do Ecoa, portal do UOL que cobre questões socioambientais, sobre o Urutau.
Aproveitando: vá conhecer Paranapiacaba. Eu cresci em Ribeiro Pires, bem do lado, e visitei muito na infância. Depois de adulta voltei umas três vezes, e por incrível que pareça a cidade mudou muito, apesar de manter o aspecto abandonado-sinistro e a neblina densa que baixa de repente nos finais de tarde.
🎞️ “Sovietstão” da Erika Fatland
Em meados dos anos 00 a repórter e escritora norueguesa Erika Fatland percorreu cinco das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central numa investigação do efeuto do fim da URSS na região. O resultado é “Sovietstão", publicado em 2014, mistura de reportagem com narrativa de viagem que registra dramas humanos, tragédias ambientais, cenários vastos e informação histórica, tudo com um senso de humor gostoso de acompanhar.
Tinha tempo que eu não lia narrativa de viagem e o livro me pegou de jeito, li em poucos dias — e quando vi já estava fazendo planos para conhecer o Uzbequistão. Para quem for se aventurar na leitura, dois toques: faça vista grossa à mal cuidada tradução, e leve em conta que depois do lançamento já aconteceu muta coisa na região. Quase todos os ditadores citados já não estão mais no poder e até mesmo a “Porta do Inferno”, que Erika usa para abrir o livro, periga ser “fechada”— bom, pelo menos é o que pretende a autoridade turcomena.
Tem na Dois Pontos.
🗣️ Tá Todo Mundo Tentando no Twitter
O twitter lançou uma ferramentinha nova. Chama “comunidades" e tem funcionamento de grupo — um espaço onde arrobas se juntam para falar sobre algo específico (ou falar qualquer coisa). Eu criei uma comu do Tá Todo Mundo Tentando que ainda não sei bem pra o que vai servir, mas achei que valia o teste, já que a newsletter tem bastante leitores nessa rede que continua sendo o fumodromo da Internet.
Pra entrar é só chegar aqui.
Adorei o tema e, sim, já me vi nesse lugar sequestrando conversas. Quem não? Eu to lendo (finalmente) o "Falso Espelho", da Jia Tolentino, e acho que tem bastante a ver com o tema. Essa frase ó me pegou: "A gente tem medo de desaparecer, de não ser suficiente, mesmo quando deveria desaparecer um pouco.".
Eu (kkk) poderia falar horas sobre esse tema do sequestro de conversa e da epidemia de protagonismo. Impressionante como isso coloca uma pedra na conversa e mata o assunto na hora. A resposta é um AH TÁ e encerra, porque nada mais vai render dali. Um monte de gente só sabe falar de si - a nova lei do eterno retorno hehe
Ameeeeei essa news demais ♥️