Tá todo mundo tentando: pós-trauma
Onde você estava quando a pandemia começou?
Para ler ouvindo ▶️ “Tempos Modernos", do Lulu Santos (gênio). A música é de 1982, mas “não há tempo que volte, amor” bateu forte demais durante uma live do Lulu em algum momento de 2020. Segue atual. Aproveite e siga/compartilhe a playlist da TTMT no Spotify com quase toda a trilha sonora das edições desde a primeira, em abril de 2021 — sim, a newsletter é cria da pandy.
Pandemia, ano 3
(esse texto foi publicado pela primeira vez, em outra versão, quando a pandemia fez um ano, em março de 2021)
Da vida no meu apartamento anterior, o que mais lembro é de uma percepção cinzenta da gravidade que hoje parece irreal.
Achava que tudo aquilo lá duraria uns meses. Sabia que seria grave, sim. Sabia que teria que mudar de rotina. Sabia que o governo vigente atrapalharia qualquer chance de salvar a população. Mas não sabia quanto, como ou quando.
Em 2020, 11 de março caiu numa quarta-feira. Foi a data em que a OMS decretou pandemia de covid19. Mas a pandemia só bateu para mim no domingo. Naquela manhã, acordei e andei com meu filho até a Japan House, onde nos sentamos no chão para ver uma animação inspirada em motivos e lendas japonesas, projetada nas paredes do térreo. Voltamos para casa, almoçamos macarrão com tomates assados e manjericão, e fiquei acompanhando pelo Twitter uma manifestação na frente da FIESP. Pensei em ir até lá dar uma olhada, algo que já fiz muito na vida: me disfarçar e me misturar aos imbecis para ver o tamanho do buraco da desinformação com meus próprios olhos. Um amigo escreveu pedindo: "fica em casa, presta atenção”. Fiquei.
Mais tarde, meu filho pegou um Uber para voltar para casa do pai, levando material de escola, computador e afins. Sem máscara, ainda o velho normal. Eu não tinha como saber, mas ficaria quase dois meses sem vê-lo. A minha ficha só caiu na manhã seguinte, quando a sede da empresa em que trabalhava enviou um email global anunciando o fechamento físico de todos os escritórios no mundo, sem perspectiva de reabertura. Nunca voltei a trabalhar em escritório. Nunca reencontrei meus colegas.
Na sequência, fui arrebatada por uma gripe que me grudou no sofá. Amigos preocupados trouxeram comida, café, máscaras, álcool em gel. Ganhei um ácido preso num bilhete ‘para quando tudo isso passar’. Não soube se foi uma cepa inicial da Covid, se foi uma gripe comum, se foi tristeza ou a Grande Ressaca Pós-Carnaval que bateu com atraso. Hoje, não faz diferença. O ácido eu tomei quando a pandemia bateu uns seis meses.
Lá por meados de abril, começaram os primeiros panelaços das oito da noite. Participei, um pouco por raiva e muito por tédio, usando um áudio do Spotify com som de panelas batendo. Nessa época, os pronunciamentos do presidente fizeram uma curva perigosa rumo ao delírio completo e entendi que estávamos todos juntos numa montanha russa que só vai para baixo. Passei a sentir medo também.

Maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro e tudo de novo. O tempo foi passando muito estranho, o passado recente sempre um borrão, os dias todos iguais. Os piores eram os das carreatas de gente lunática buzinando e bloqueando entrada de hospital — eu morava na Paulista, ninguém me contou, eu vi.
Também vi uma adolescente sem casa morrer tossindo na calçada na frente do MASP, com os colegas de situação não podendo encostar e esperando a GCM recolher o corpo. Ouvia sirene de ambulância o tempo todo. Fiz planos de fugir da cidade. Vi gente esticando lençol branco nas janelas em apoio aos médicos e enfermeiros da linha de frente, gente falando sobre impacto econômico, a Rua Augusta com todas as fachadas abaixadas.
O isolamento é um lugar quentinho, mas nem toda segurança interior dava conta de manter o espírito firme. As coisas aconteciam em espiral. Criei novos hábitos só para perder e tentar adquirir de novo. Inventei paixões obsessivas tentando espantar a monotonia. Aprendi receitas, testei dietas, tive gastrite, enxaquecas e insônias avassaladoras. Voltei a fumar, parei de beber, tive diagnósticos de depressão e ansiedade (primeiro) e TEPT (depois). Criei o saudável hábito de fazer exercício, o saudável hábito de escrever todos os dias, o saudável hábito de deixar o celular fora do alcance, o saudável hábito de fazer exercícios. Comecei a comer pipoca no jantar e depois no almoço também. A prática espiritual saiu do terreiro e se instalou na minha cozinha, no meu quarto, no canto da sala onde tentei aprender a cuidar de plantas. Li muita ficção capaz de me tirar do corpo. Vi lives de artistas, me inscrevi em um monte de cursos (fiz alguns) e, ao contrário da maioria das pessoas, assisti pouco a filmes e séries. O surto coletivo das festinhas de Zoom também não me pegou. O que me pegou, na marra, foi aprender a separar trabalho da vida. E no final, no contrafluxo, criei coragem e mudei de casa. Na verdade, mudei quase tudo quando entramos em 2023.
Preciso sempre me lembrar que a OMS ainda não anunciou o fim oficial da pandemia. Estamos rumo à quinta dose de vacina e amigos ainda aparecem doentes — mas a Prefeitura de São Paulo achou ok derrubar a obrigatoriedade de máscara no transporte público, enfim, sinal de que a vida segue, apesar disso ou daquilo, apesar de tudo isso aí.
Hoje, a vida flui rápida e urgente, toda manhã me convocando a dar conta das demandas que ficaram represadas. Continuo firme na resposta que aprendi a dar durante a pior fase da pandemia, quando me perguntavam como as coisas estavam pro meu lado: da porta para dentro, tá tudo bem.

🎸 Hinos da pandemia
Perguntei no Twitter. As respostas vão te levar imediatamente para algum momento entre 2020 e 2022.
E o seu? Me conta nos comentários:
🎥 Mubi DE GRAÇA!
Contei semana passada e repito hoje: a Mubi está dando 30 dias de graça para quem lê a Tá Todo Mundo Tentando :)
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Que dureza que foi viver uma pandemia...
Oi, Gaía.
(graças a um podcast eu aprendi teu nome certinho...)
Amei o texto querida. Infelizmente pra mim, da porta pra dentro não está tudo certo. Com a pandemia, da porta pra dentro virou medo, pânico e correria. Sabe aquelas fases em que tudo dá errado e vc não sabe pra onde ir, como ou onde está o horizonte? então...
Mesmo assim, obrigada por me fazer sorrir, lembrar e refletir sobre isso.