🛌 Tá todo mundo tentando: dormir (2)
Um estado constante de vigília em que cada segundo parece perdido numa linha de tempo surreal.
Para ouvir lendo ▶️ “Can't Sleep", do Rockets (os Rockets de Detroit, não os Rockets de Paris).
Dormir
(se você perdeu, pode ler a primeira parte da história aqui)
O que acontece quando dormimos mal? Num prazo curto, a privação do sono pode causar dores no corpo, cansaço, sonolência, irritabilidade, alterações repentinas de humor, perda da memória de fatos recentes, comprometimento da criatividade, lentidão do raciocínio, desatenção e dificuldade de concentração. Isso quando ficamos umas quatro noites sem dormir. Possivelmente, ao chegar nesse estado o corpo vai desligar sozinho, pelo menos um pouco. Não de um jeito bom, mas vai desligar. Acontece que: nem sempre. Segundo a Associação Brasileira do Sono, existe uma condição conhecida como “insônia terminal”, caracterizada pela perda intensa da capacidade de dormir por mais de seis semanas, com consequências físicas e psiquiátricas. A insônia terminal pode acontecer tanto em quadros de sono interrompido quanto naqueles em que a pessoa acorda e não consegue mais dormir. E pode resultar em estados de mania e depressão, com alucinações e alterações físicas profundas. Essa é uma forma arrumadinha de dizer que quando se pára de dormir, a vida ficar toda errada. O que começa como confusão e irritação se torna um estado constante de vigília em que cada segundo parece perdido numa linha de tempo surreal. A cabeça, o humor, a libido e o apetite param de funcionar e os tijolinhos encaixados da rotina vão se soltando até que estrutura fique em ruínas, deixando o residente sm saúde física, energia mental ou clareza de propósito para tentar reconstruir. O complicado da falta de sono é que a insônia em si não é exatamente uma doença, mas um sintoma de outra coisa que vai mal. Se por um lado ela impacta tudo, por outro é o sono que é alterado por algo que está fora de lugar.
*
Não parecia possível que qualquer coisa fosse mal com a vida de Aurora. Ela fazia os exames e checkups regularmente e tudo parecia bem como sempre. A vida estava sob controle. Não apenas agora, mas há anos. A ideia de não conseguir dormir era absurda, irreal — imagina, logo ela! Tanto que, quando parou de dormir, nem para o marido contou. E ninguém percebeu. Aurora deitava todas as noites na mesma cama, no mesmo horário, na mesma rotina, fingia dormir ouvindo o marido respirar pesado ao seu lado, deitada no colchão caríssimo e nos travesseiros perfeitos. Com os olhos fechados e em posição horizontal de descanso, mas sempre desperta. Sinalizar a insônia teria consequências inimagináveis, melhor deixar assim e esperar que o sono viesse sozinho. Aurora trabalhava dentro da própria cabeça, usando técnicas de mindfullness e meditações que sabia de cabeça. Lembrava que não queria estar em outro lugar além do aqui e agora, que não podia controlar o incontrolável, dava vazão aos pensamentos naturais da cabeça mas sempre lembrando de voltar ao lugar onde estava. Com o corpo relaxado e a respiração lenta, ia aceitando a própria incapacidade de desligar e ficava ali em estado meio vegetativo, esperando o sono que não veio na primeira noite, nem na segunda, nem na terceira, nem na quarta. Levantava no mesmo horário, tomava café da manhã com o marido e a filha, fazia exercícios, trabalhava, cumpria agenda, frequentava os eventos de sempre. A chegada da noite logo se tornou só mais um compromisso diário. Quando bateu umas umas três semanas sem dormir, Aurora começou a aceitar que essa talvez fosse sua nova condição. Quem sabe seu corpo não dormisse porque não precisava mesmo. Quem sabe ali no quarto mais confortável do mundo, o centro de seu pequeno reino de dormir bem, o sono fosse agora diferente do que era antes, do que era para outras pessoas, mais um descanso do que um desligue. O que a entregou, enfim, foram as pequenas coisas de todos os dias. Sempre elas. Começou esquecendo um compromisso, trocando nomes, perdendo detalhes antes visíveis e fáceis. Numa terça, foi sozinha dirigindo até uma reunião que já tinha acontecido na segunda. Numa quinta, pediu para o maquiador caprichar na base para esconder as olheiras. Num sábado, finalmente, gritou com a filha pequena, que estava chorando por ter perdido de vista a boneca preferida. Seu grito de irritação era tão extraordinário que a criança estranhou e chorou mais, espantada com o nervosismo da mãe. Percebendo a criança era a primeira a se afetar pelo seu novo estado, começou a chorar vendo a filha chorar. E Aurora nunca chorava. Nem em filme triste, nem em casamento de amiga, nem na morte do pai, nem no parto. A sua vida era feita de sorrisos leves e temperamento tépido. Agora, o choro das duas continuava enquanto o marido levava a pequena para dentro do apartamento, mas o barulho abafado pela distância não diminuía sua própria angústia: estava chegando o momento em que alguém ia perceber. Passou o resto do dia fingindo uma dor de cabeça e no domingo inventou uma virose. Pela primeira vez desde não sabia quando, tirou uma semana. Não ia viajar, não era um curto período de estudos ou de preparo para novo projeto: era uma semana de licença médica mesmo receitada por ela mesma — quem é chefe não precisa de atestado. Marido, babá, irmã, mãe, assistente, assessora, motorista, governanta, todo mundo continuo seguindo a vida como sempre seguia, nada nunca parava de funcionar. Nada nunca não ia bem. E mesmo assim: de noite, o sono não vinha. Aurora separou livros para ler, filmes para ver, comidas para comer. Tentou cochilar na poltrona da sala, na rede do jardim, na espreguiçadeira na piscina. Deu ordens de não ser incomodada e tentou dormir no chão do quarto, dentro do closet, com um edredom dentro da banheira, no sofá cama do quartinho da filha. Marcou sessão de massagem com pedras quentes, de meditação na água, de yoga. O melhor que conseguia era uma ilusão de sono, um estado de descanso que, conforme dias e noites passavam em a interrupção clara do sono, era o mesmo quando em pé ou deitada, com olhos fechados ou abertos, de camisola ou vestida. Achava que estava ouvindo coisas. Não entendia frases. O marido parecia um estranho. Trocou o nome da filha. Voltou a trabalhar e o tempo passou como em um dia ou um ano. Tentou vinho, chá de camomila, comidas pesadas, comidas leves, jejum, CBD, caminhadas. Quando voltava para o trabalho, era como se não tivesse saído. De novo, pediu para o maquiador caprichar no corretivo para esconder as olheiras que agora eram mais como manchas escuras e fundas debaixo dos olhos. O cabeleireiro fingiu naturalidade quando seu cabelo começou a cair com a escova. Na gravação corriqueira de mais um vídeo da semana, o diretor e o assistente de set se olharam de rabo de olho quando Aurora não conseguiu falar o texto do patrocinador do canal. Alguém trouxe um teleprompter. O resultado não mudou. A gravação que normalmente levava meia hora levou a tarde inteira. Quando estava guardando o figurino, o marido chegou para levá-la para casa: não ia deixar que dirigisse “naquele estado”. Aurora queria falar, mas sentia que a voz não estava funcionando. Viu do alto seu corpo sendo colocado no banco do passageiro, e talvez tenha notado alguém da equipe com o celular para o alto, filmando enquanto perguntava o que tinha acontecido. O carro entrou em movimento, ou pelo menos assim parecia, mas não tinha certeza, e não tinha certeza também se ouvia ou se imaginava que uma voz vinha de longe perguntando se ela estava mesmo ali.
Aurora não dormia há uns dois meses.
(Continua)
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a sua história do tá todo mundo tentando dormir é daquelas que eu comecei lendo devagar e no meio eu já tava lendo igual fórmula 1 vruuummmm vrummm de empolgação literária, agora to aqui ANSIOSO SEM DORMIR para terminar a história
Pô, fiquei com vontade de comer esse molhão aí.