Tá todo mundo tentando: retomar a Paulista
Parece manifestação de insatisfação geral, mas não se engane: é esvaziamento de sentido.
A Tá Todo Mundo Tentando está em um breve hiato. Volto com novas crônicas na edição de 06/05. Até lá, os envios de toda sexta-feira de manhã chegarão com crônicas publicadas em 2021. Como sempre, fale comigo por email (é só responder esse) ou deixe um comentário. Às vezes eu demoro mas sempre respondo!
Post publicado originalmente em 09/07/2021
Quando eu era adolescente, lá na virada dos 90 pros 00, a Paulista já era a avenida certa para rolês. Usei muito a frente do Conjunto Nacional e o vão do MASP como ponto de encontro. As bancas de jornal eram referência para comprar cigarros gringos e revistas de música ou de moda, e a avenida perdia o posto de “coração financeiro” (que foi para a Faria Lima com passagem na Vila Olimpia) para assumir sua vocação cultural. Culpa do MASP, do SESI, da Casa das Rosas, do casarão na frente do Itaú, do SESC, dos cinemas, do Baixo Augusta e da Gay Caneca. Esse projeto de avenida como espaço para a cultura ficou completo com o Paulista Aberta, que fechava as pistas de carros aos domingos e feriados — interrompido em março do ano passado, deve voltar no pós-pandemia.
Foi após o Paulista Aberta que as calçadas se tornaram palco de músicos de todos os talentos. Hoje, em qualquer dia da semana, a avenida é lugar de brechós móveis, rodas de slam, bancas de artesanato, incensos, livros usados, meias, varinhas do universo Harry Potter e bolo com café. Essa Paulista como mercado a céu aberto não dá a mínima para o coronavírus. Em um domingo recente, uma família grelhava espetinhos na esquina da Alameda Campinas. Não era comércio: era lazer mesmo. Com churrasqueira portátil, cervejas no isopor e caixinha JBL torando.
Das encarnações da Avenida Paulista que já vi, a de agora é a mais viva e diversa.
Isso me dá esperança porque prova que a Paulista não é território exlcusivo dos cretinos com camisa da CBF vociferando contra “a ameaça do comunismo”. Foi mais ou menos na época em que vim morar aqui que a avenida se tornou cenário dessa turba ensandecida, alimentada por corrente de zap. Joyce, Lobão, MBL – todos eles passaram aqui. Eu vi com meus olhos, ninguém me contou, como esses movimentos se tornaram manifestações apoiando o bolsonarismo. Eu estava lá quando o Blsnar apareceu no telão cuspindo frases como “quem não concorda vai acabar na ponta da praia”. Estava lá quando as pessoas aplaudiram o Bslnr dizendo que “as minorias terão que se curvar às maiorias“. E eu atravessei a Paulista, da Brigadeiro até a Peixoto Gomide, quando essa gente comemorou a vitória do capitão, em voto eletrônico, auditável e democrático. Botei um capuz na cabeça, engoli o choro e fui assistir para registrar que, sim, isso estava acontecendo. Nessa noite eu voltei pra casa e chorei na janela, sozinha e consciente da minha inutilidade, até perder a voz.
Depois de 2018 a Paulista foi palco de muita coisa deprimente, com destaque para as infames carreatas da morte de 2020: longas filas de carro fazendo buzinaço e fechando a via para ambulâncias — pra quem não sabe, a Paulista conecta alguns dos mais importantes hospitais da cidade, como as Clínicas, o Sírio-Libanês e o Beneficência Portuguesa.
Ficou mais difícil, mas arrisquei a saúde indo aos atos dos grupos de esquerda de 2020, quando a gente nem sabia direito como a covid-19 era transmitida. Fui ver as lideranças das torcidas organizadas fecharem os dois lados da avenida. Participei do cordão de mulheres no que ficou conhecido como “Batalha da Paulista”, quando o Choque jogou bomba nas pessoas. Vi essas pessoas se juntarem para virar caçamba de lixo e fazer barricadas, jogando paus e pedras de volta e dando muito trabalho até a dispersão na altura da Haddock Lobo. Sempre vou lembrar de quem não teve medo e aplaudiu comigo. E sigo observando como a ação direta da resistência de esquerda e movimentos sociais está sendo engolida pela cobertura de redes de TV.
Eu vi muita coisa muito feia na avenida durante a pandemia. Vi gente morta na calçada mais de uma vez. Acompanho com os olhos o ir e vir das famílias que montam acampamento com sacos plásticos na frente de comércios fechados. Essas barracas são desmontadas pela prefeitura pelo menos uma vez por semana, mas sempre voltam porque a miséria não deixa de existir.
Para todos nós que andamos na rua é nítido que a miséria só aumenta.
Desconfio quando vejo chegar na Paulista os mesmos grupos que deram combustível pro governo facista que temos hoje. Parece manifestação de insatisfação geral, mas não se engane: é esvaziamento de sentido.
Por isso, tenho procurado esperança em outras coisas. E senti um pouco de esperança ontem de manhã quando passei na frente da FIESP e os idiotas de sempre não estavam lá e um pouco mais adiante, na frente do MASP um grupo de universitários da periferia convocava assembléia para discutir a ação dos movimentos estudantis.
Menos velho branco empoderado, mais jovem estudante atuando na militância política: a esperança vem daí.