💅 Tá Todo Mundo Tentando: mulher de terninho
Eu não saí de casa naquele dia procurando roupa nova. Mas aconteceu.
Para ler ouvindo → “Second Chance", do Peter, Bjorn and John. Lembra deles? Tá em um disco chamado Gimme Somme, que eu ouvi até cansar lá em dois-mil-e-alguma-coisa.
Oi,
Essa é uma edição sem paywall da Tá Todo Mundo Tentando, uma newsletter sobre a vida nos anos 2020 (e outras coisas mais).
Sigo avisando: meu novo livro, “Tá Todo Mundo Tentando: Histórias Para Ler na Cidade”, seleção de crônicas já publicadas nesse canto + outras histórias inéditas, está nas principais livrarias e na Amazon em versão Kindle e física:
Mulher de terninho1
Eu não saí de casa naquele dia, uma tarde de terça-feira de calor forte em São Paulo, procurando roupa nova. Mas aconteceu.
Um paletó2, ou “terninho” na linguagem leiga, imprime uma ideia muito de mulher adulta, profissional, bem sucedida, bem resolvida. Uma mulher bem, vestida em um bom terninho é um ideal, uma mulher que resolveu as pendências mais baratas e foca no que importa, seja lá o que for. Uma mulher assim é difícil de achar. E um bom terninho, mais ainda.
Um bom terninho precisa vestir bem, imprimir elegância, não deixar com cara de promotora de estande de congresso. Para isso rolar, é necessário que quem veste saiba vestir. Não é uma mera questão de tecido e corte, mas uma questão de recheio. É estranho o efeito de quando uma roupa veste a pessoa, ao invés do contrário. Uma roupa que veste bem demanda algo de quem está dentro dela, seja um vestido de festa ou uma jaqueta de couro (a combinação dos dois é meu look preferido). Por isso, nem toda gata segura a onda de usar paletó feminino — mas quando acontece: uau!
Eu, acho, sei usar. Mas não foi sempre assim, nem é assim todos os dias. Estou vestindo um agora mesmo, enquanto escrevo numa cafeteria, esperando dar hora de uma consulta médica3 um paletózinho de couro preto. Comprei há anos, no impulso, e deixei guardado porque era largo demais. Só mês passado, fazendo uma limpa no closet, tomei vergonha na cara e levei para uma profissional de costura que trabalha com couro. Pedi para ajustar, deixar no meu tamanho. Levou três provas e ficou perfeito, então agora vou usar até ficar do jeito que eu gosto: gasto.
Tenho também um de linho cru, comprado em loja de departamento, que não tem um bom corte, mas engana porque linho, como couro, é durável e melhora com a maciez do tempo, algo parecido com o que acontece com o jeans de verdade — bom assunto para outro dia, porque jeans é minha peça de roupa favorita e, conforme meu corpo muda, tenho achado difícil de encontrar um que de fato fique ótimo, como os que tive no passado4.
De volta ao paletó que estava me esperando num brechó numa tarde quente de terça-feira: ao contrário do couro e do linho, esse foi caro. Não sou rica e não sei o que é gastar muito com roupa, renovar guarda-roupa com tendências da estação, comprar sempre que dá vontade, etc. Quem sabe na próxima vida. Nessa, já camelei tempo demais para pensar antes de comprar qualquer coisa. Sou adepta do comprar pouco para usar muito, sempre considerando quantas vezes uma peça de fato será usada. Acontece que algumas coisas custam caro porque são boas demais mesmo, e roupa (às vezes!) é uma dessas coisas. Não importa. O que importa na história é que um dia eu entrei no brechó porque na época eu era uma escritora freelance (cof, cof, desempregada, cof, cof) querendo ser a Carrie Bradshaw. Estava vagando pela Bela Vista, onde morava, fotografando casas antigas após comer qualquer coisa no Bexiga — olhando para o passado, era bem boa essa vida de pessoa sem horário certo, fazendo coisas criativas. Meus pés me levaram até a Augusta, e atravessei o corredor escuro até o brechó que eu já conhecia e onde sempre encontrava “alguma coisinha”.
Esse é um brechó na tradição dos que eu frequentava na adolescência, um lugar empoeirado, tomado por araras pesadas, pilhas de cardigãs dobrados, fileiras de sapatos gastos, bacias de armações de óculos, cestos de lenços, roupas penduradas em cabides nas paredes, como as peças de arte que às vezes até uma camiseta branca é mesmo. Uma bagunça organizada de cores e eras, unidas pelo cheiro de naftalina.
Diferente dos brechós da minha adolescência, esses de hoje são caros. Antes, brechó era quase sempre a loja de velharias vestíveis selecionadas por senhorinhas com bons contatos e gosto peculiar, ocasionalmente uma gay com paixão por tempos antigos — para ficar na seara dos clichês. Hoje, é comum a figura do curador ou curadora, a pessoa cujo trabalho envolve conhecer bazares de igrejas e closets de fashionistas, frequentado-os em busca de peças selecionadas com cuidado, que pode ser uma jaqueta jeans sem marca, mas cheia de charme, ou um vestido elegante que vai ganhar mais interessância com o passar dos anos — o fator crucial da boa curadoria é entender a riqueza interior daquilo que envelhece. Além de encontrar, claro, o trabalho também envolve precificar, expôr e vender. E isso tudo é trabalho.
A curadoria desse brechó é bem feita, e entre as pilhas de jeans e moletons, bolsas cansadas e chapéus curiosos, sempre dá para achar uma camisa esperta, gasta na medida certa, um lenço, uma bijou. Comprei lá, certa vez, uma camisola de seda pura cor de rosa, bem clarinha e muito leve, que virou um slip dress de fazer inveja para Kate Moss. E, outra vez, uma bolsa quadrada Pierre Cardin, de couro marrom e estrutura firme, que, apesar da alça gasta (acho charmoso assim) sempre ganha elogio.
Poderia escrever um livro5 que achei em brechós, em São Paulo ou em viagens: o casaco de onça que honra a Edie Sedgwick6 e comprei num muquifo perto do Chelsea Hotel (entendedores entenderão), a jaqueta de pele de coelho com zíper que comprei numa feira de rua em Shoreditch num inverno cruel, a camisa branca perfeita que comprei em Roma e uso pouco para não gastar. Brechó faz parte da minha vida desde muito antes dos Zoomers os descobrirem. E esse, o da Augusta, é um que frequentei muito, sempre parava para dar uma olhada quando estava passando por perto — porque esse é o segredo de frequentar brechó, dar uma passadinha sempre que possível, porque você nunca sabe quando vai dar sorte de encontrar alguma coisa que de fato vale a pena.
Foi o que aconteceu nesse dia. Mexendo numa arara qualquer dei de cara com ele: um paletó YSL ideal.
De lã cinza, com bolso interno, todo o forro e as ombreiras no lugar. Eu estava com os braços cheios de peças, a caminho do provador improvisado atrás de uma cortina de plástico, mas parei. Eu olhei pra ele e ele olhou pra mim. Larguei meu fardo em cima de uma pilha de roupas e provei: comprimento ideal no começo dos quadris, tudo certinho na altura dos pulsos. E dentro dele, no reflexo do espelho, a mulher que eu queria ser, facilitada pela ilusão da roupa: a mulher de terninho. Adulta, com a vida resolvida e as contas em dia. Que sabe o que quer e como conseguir. Que se conhece, que faz análise, que toma vinho quando está cozinhando em casa, que discute romantismo como uma questão alemã7. Uma mulher viajada, vivida. Uma mulher com uma história e sem questões com a validação externa. Um mulherão. Uma utopia.
🧠 Encontro com o narrador
Curso novo da colega Fabiane Guimarães, que acontece todas as quartas de setembro, falando sobre o desenvolvimento da voz narrativa. Mais infos no Note abaixo, e inscrições direto no site da Casa Inventada.
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Bom fim-de-semana!
E lembre: para falar comigo, é só responder esse email, ou deixar um comentário:
Essa edição conversa com o “3 Coisas Que Aprendi Com Você” da colega Vanessa Guedes.
Paletó = casaco com bolsos externos, cujo comprimento alcança os quadris, normalmente usado sobre outra peça de vestuário.
Spoiler de idade: ao passar dos 45 você começa frequentar muitos consultórios médicos.
A rainha do Substack, Anne Hellen Peterssen, tem um episódio ótimo sobre como a busca do “jeans ideal” tem a ver com a obsessão por “corpo perfeito". Leia no Culture Study (em inglês).
Esse brechó é no baixo Augusta?
Gaía, eu tou lendo seu livro. Comprei em Campinas, mas moro em Salvador. Ontem à noite, parei no relato da Patagônia, pois quero ler sobre você aqui nesta terra com aquele vagar de quando sento pra tomar um espresso com pastelzinho de nata... Como tenho especial interesse em literatura de viagem, acho que vou por o Tá todo mundo tentando junto Bruce Chatwin, A. Camus, Lauren Elkin, Paula Carvalho/Isabelle Eberhardt e trazer em breve pta junto, por indicação sua, o Paul Theroux.