Tá Todo Mundo Tentando
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Tá todo mundo tentando: um dia, um gato, 3
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Tá todo mundo tentando: um dia, um gato, 3

O que acontece atrás das paredes. E mais: livros, Emanoel Araújo, Luedji Luna e cursos para quem quer escrever

Para ler ouvindo: The Rat, do The Walkmen — uma das grandes dos anos 00 (Youtube/Tidal)

Pt 3

(Se você não leu: aqui está a parte 1 e parte 2)

Ilustração: Tiago Lacerda » @elcerdo

A primeira vez que ouvi, foi no meio de uma manhã qualquer. A humana já tinha saído pra trabalhar, correndo como em todos os dias das ultimas semanas, e eu fiquei debaixo do edredom, com preguiça de levantar junto. De longe, ouvi algo como que arranhando a parede por dentro, levantando minhas orelhas por reflexo.

Mas mais importante que o barulho: o cheiro. Foi isso que me tirou da cama. Do outro lado da massa corrida e da tinta, por dentro dos tijolos, tinha alguma coisa que eu reconhecia. Outros bichos, talvez milhares deles, vivendo em algum lugar depois da parede. Domesticado, eu tinha nojo de ratos. Mas havia um chamado de alguma coisa mais forte, alguma coisa que não podia explicar, um resquício de uma outra época, uma época em que ruídos e cheiros significavam outra coisa, a única chance de alimento quente.

*

Levantei arqueando as costas e deixei os radares internos localizarem a fonte do som. Saí cheirando os rodapés e os cantos, procurando uma saída de ar, um pedaço da casa onde o cheiro viesse com mais força. Meu olfato de gato me levou com facilidade até um buraco no canto do quartinho, atrás da cozinha, o canto onde a humana deixava umas caixas sem uso, jornais e revistas velhos, baldes e material de limpeza. Ali o cheiro de rato era nítido. E a fonte dele também: um buraco sujo e escuro, na quina da parede, atrás da pilha de jornal velho. Um buraco pequeno, mas já frouxo o suficiente para dar passagem.

Eu sabia que ratos não usavam o buraco para entrar no apartamento. Talvez preferissem outros buracos em outros apartamentos sem gatos residentes — ratos são muitas coisas, mas não são idiotas. Talvez sejam confusos, uma vez que são numerosos demais, sempre desprezados e famintos, destinados a viver de sobras, um bicho comum que a maioria das pessoas ignora. Ainda assim: sobreviventes.

*

A humana nem percebeu, mas todos os dias eu cutucava o buraco do rodapé como se fosse uma ferida. Um dia passava só uma pata, logo já encaixava o ombro, depois parte da cabeça. Não demorei pra conseguir esmagar o corpo todo pra dentro da parede.

Do outro lado, prédio abrigava um mundo não visto por humanos, feito de cimento e de metal, poeira e umidade, baratas e aranhas, longe do conforto e segurança que reinavam do meu lado da parede.

Os ratos, espertos, sabiam que eu estava vindo. Sabiam que eu ia passar ali. Por isso, quando cheguei, na primeira vez não vi nenhum: só ouvia os barulhos das patinhas minúsculas e velozes, sentia seus cheiros mudando de lugar.

Dessas primeiras saídas, a humana notou só um pouco de poeira nos meus pêlos, uma sujeira banal que ela tirava com as mãos. De resto, continuava tudo o mesmo de sempre. A humana não tinha ideia que uma vez fora do nosso espaço eu tinha uma vida própria, secreta, só minha, que me dava uma satisfação que entendia como independência mas que também tinha gosto de vingança por ela não estar comigo todo o tempo. Todas as manhãs antes de sair, e de noite ao voltar, ela trocava minha comida, colocava água fresca na minha travessa, nunca deixava faltar nada, mas sempre sem notar o quanto estava perto do buraco da parede. Do meu buraco. Era só olhar.

Uma manhã, como em todas as outras, saí da cama depois de Lara, arrumei a direção dos pêlos com a língua e ouvi um barulho diferente. Fui em silêncio até o quartinho em tempo de surpreender um deles, um rato, em cima da minha ração fresca. Cabia dentro da travessa de comida. O pêlo cinza, o rabo rosa, os olhos vermelhos e o cheiro de lixo não escondiam: aquilo era mais presa do que alimento. Em uma fração de segundo, desapareceu pra dentro da parede, deixando o buraco agora largo suficiente pra deixar passar uma família.

Mais pela diversão de correr atrás de algo e menos como castigo pela ousadia do roedor em vir até meu canto, fui atrás. Uma vez dentro da parede, tudo era deles e eles estavam em todos os lugares, todos iguais, todos horríveis, centenas de rabos pelados e olhos vermelhos. Nenhum se atreveu a chegar perto de mim. Podia ter escolhido qualquer um. Mas reconheci o cheiro do infrator que ousou passar pra dentro de casa.

No frenesi da caçada, atravessei andares, escalei canos, investiguei quinas. O cheiro só cessou quando finalmente peguei o bicho pelo pescoço, apertando e tirando sangue até ele parar de guinchar. Metálico, ocre e ralo, ele perdeu a graça. Com nojo, deixei pra morrer ali na frente da plateia de roedores e só então percebi os cheiros voltando com tudo, cheiros que meu olfato não mais reconhecia.

Em um instante, tudo era silêncio e eu não tinha a mínima ideia de há quanto tempo estava fora, não sabia mais qual a direção do apartamento, da minha humana, minha cama, minha ração, minha janela sempre aberta, meu raio de sol batendo no tapete, meu conforto, meu lugar.

Pra dentro da parede, sem luz e com excesso de cheiro e sujeira, o caminho de volta podia ser qualquer um.

Podia também não existir.

Ilustração: Tiago Lacerda » @elcerdo

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11 coisas para fazer em SP essa semana

Essa edição é um oferecimento da Refúgios Urbanos, uma imobiliária feito por (e para!) amantes da arquitetura

📚 Para ler

Importante: os links abaixo são para vendas dos livros em livrarias independentes, para os sites das próprias editoras e/ou dos autores. E não ganho nada caso uma venda seja realizada através desses links — mas as livrarias, as editoras e os autores, sim ;)

Grécia Revisitada, Frederico Lourenço

Ensaios do filósofo e tradutor português (são dela as ótimas traduções da Ilíada e da Odisséia pra Companhia das Letras) sobre cultura helênica. Ele passa por teatro, poesia e filosofia em uma escrita sem afetação acadêmica, mostrando como o estudo clássico pode ser generoso e instigante. Vale comentar: é linda a edição da Clarabóia, com capa dura azul. Dá pra comprar direto com a editora.

A obra em negro, Marguerite Yourcenar

O livro do mês do Clube Calhamaço é um catatau publicado em 1968, ambientado na Europa do século 16, ali entre a Idade Médio e o Renascimento, que segue a vida de Zênon, homem que abre mão da vida na igreja para se tornar médico, filósofo e alquimista. Quem está familiarizado com a obra de Yourcenar já sabe: surra de erudição clássica em forma de romance histórico. Para aprofundar (ou despertar interesse) o Críticas de Rodapé tem uma resenha extensa, baseada nessa mesma edição (Nova Fronteira, com tradução de Ivan Junqueira).

Ao paraíso, Hanya Yanaguhara

Eu ainda não li, apenas chegou aqui — mas já me impressionou, porque postei no Stories e recebi dezenas de respostas empolgadas. É o livro novo da autora de "Uma vida pequena" e é comparado a Guerra e Paz. Ousado, tem setecentas páginas e percorre três séculos e diferentes vivências em um Estados Unidos ficcional. Em pré-venda no site da editora.

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🤴🏿 Emanoel Araújo

Na última quarta-feira, sete de setembro, morreu o artista e intelectual baiano Emanoel Araújo, aos 81 anos. 

A post shared by Pinacoteca de São Paulo (@pinacotecasp)

Figura essencial das artes no Brasil, Emanoel foi diretor da Pinacoteca do Estado, responsável por trazer ao país obras importantes, e mais tarde fundou o Museu AfroBrasil, no Parque Ibirapuera.

Em novembro passado, Emanoel muito gentilmente me recebeu em sua sala no Museu AfroBrasil para duas horas de conversa, que resultaram em uma entrevista em duas partes publicadas no começo de dezembro, no finado Paulicéia:

Paulicéia
[Paulicéia 045] Emanoel Araújo: "São Paulo tem isso de não prestar atenção"
Essa semana, o artista e museólogo Emanoel Araújo fala com exclusividade ao Paulicéia sobre sua carreira que começa como artista nos anos 1960, na Bahia, tem grandes momentos internacionais, atravessa acontecimentos importantes da cultura brasileira, como a reforma e reabertura da Pinacoteca do Estado, e culmina com a criação do mais importante museu paulistano: o Museu Afro Brasil…
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Paulicéia
[Paulicéia 046] Emanoel Araújo: "A questão do Museu Afro Brasil é ideológica"
TL;DR 👉 Na entrevista de segunda-feira, o artista plástico, curador e intelectual baiano Emanoel Araújo falou sobre sua carreira como museólogo à frente da restauração da Pinacoteca do Estado e da criação do Museu Afro Brasil. No papo de hoje, para apoiadores do Paulicéia…
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Contei um pouco sobre como foi o papo, nessa thread: 

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👸🏾 She Rocks com Luedji Luna

Ainda na editoria "olha quem eu entrevistei": Luedji Luna. Uma artista, cantora, compositora brilhante e, dentro da geração que despontou ali em 2015, minha minha voz favorita.

A post shared by Luedji Luna (@luedjiluna)

Falei com a Luedji enquanto ela se preparava para se apresentar nesse domingo, Dia D do Rock in Rio, quando todos os palcos principais terão artistas mulheres como atrações — tem sido assunto recorrente nessa temporada de She Rocks, o podcast oficial do Rock in Rio.

No papo, ela fala sobre maternidade, criatividade (e a falta dela), sobre tocar na gringa, sobre a amizade com a Liniker e conta a história por trás do hit "Banho de Folhas".

Procure pelo She Rocks na Deezer, no Spotify ou onde você ouvir os seus podcasts.

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💡  Cursos de escrita

Essa semana recebi um email de uma leitora me pedindo pra ler as coisas dela. Não acho que sou a pessoa certa pra isso. Tem gente que é. O escritor Antônio Xerxeneski, por exemplo, está fazendo uma newsletter ótima sobre literatura e sobre a loucura de escrever — é alguém que sabe ler e opinar.

Uma coisa que ajuda demais quem quer escrever e quem sabe identificar "se tem jeito pra coisa" é fazer cursos de escrita. Os cursos nos colocam em contato com outras pessoas que escrevem e com gente acostumada a dar pitaco nos textos dos outros. E nos ajudam a entender nossos próprios processos, ritmos e referências. 

Alguns cursos que vem aí:

A jornalista Marcela Franco, editora do caderno infantil da Folha de São Paulo, acaba de anunciar mais um módulo do seu curso de escrita criativa, que acontece de forma remota. Informações no post abaixo e inscrições no Sympla.

A post shared by Marcella Franco (@amarcellafranco)

A Oficina Experimental de Criação do escritor J.P. Cuenca, sempre via Zoom, tem acontecido com regularidade desde 2021 e sempre rende altos elogios dos participantes. A última rolou agora em agosto mas ele está formando nova turma para outubro, fique de olho nesse link ou fale direto com ele no IG

A Escrevedeira, escola na Vila Madalena, tem uma programação bastante diversa e intensa de aulas presenciais e remotas, incluindo um módulo EAD de escrita da ficção com a Noemi Jaffe. Os próximos cursos da casa estão no Instagram.

Outra oficina recorrente é a Submarino, do também escritor Ronaldo Bressane. A próxima edição, entre 22/09 e 27/10, terá como tema as ficções russas e ucranianas, e acontecerá via Zoom. Para se inscrever, fale com ele no Instagram ou no site.

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