🧷 Zeladoria de maio: Death, Clash, Botinada, Peaches e tudo que cabe nos 50 anos do punk rock
Um cinquentão muito necessário.
Para ler ouvindo ▶️ “Lover’s Rock”, do Clash, a única banda que realmente importa. Tá na playlist da Tá Todo Mundo tentando no Spotify.
Oi,
Essa é a edição de abril da Zeladoria, o envio mensal da Tá Todo Mundo Tentando com coisas legais para ler, ver, ouvir, comprar.
Nem sempre é fácil pegar o momento chave do começo de um movimento. Quando se trata de uma coisa indefinível, como música, pode ser mais difícil ainda.
Qual é o momento que define o começo do que se convencionou chamar de punk rock? Qual foi a primeira banda, o primeiro álbum, o primeiro palco? Quem foi o primeiro punk?
As respostas são inexatas, e o próprio arquétipo punk determina que elas não têm a menor importância.
Ainda assim, dá para aproveitar 2025 para lembrar que, há 50 anos, em Nova York, um fanzine foi rabiscado, colado, xerocado e distribuído para contar o que estava acontecendo nas ruas, nos bares, nos palcos, nas garagens. Esse zine se chamava “Punk”, e acabou batizando uma cena, uma sonoridade, uma estética, uma atitude que ecoou pelo mundo. Em algum momento, ganhou até o carimbo de “movimento” — e eu, aqui do alto dos meus quase cinquenta anos, nunca deixei de gostar de punk rock. Acho que a palavra movimento faz todo sentido, sim, porque a razão de um movimento é afetar o mundo ao redor. E isso o punk fez.
A edição da zeladoria de hoje é a primeira edição temática que eu faço. Se gostar, me conta.
🎞️ A Band Called Death (Mark Christopher Covino e Jeff Howlett, 2012)
Antes de NY, antes dos Ramones, antes do punk ganhar nome, três irmãos negros de Detroit formaram uma banda chamada Death.
Esse documentário resgata uma história surpreendente com riquíssimo material de acervo que, como o som, é cru, veloz e direto — uma sonoridade que antecipou muitos dos elementos do punk.
Além de resgatar o legado negro do rock, também mostra como a redescoberta da banda nos anos 2000 gerou uma nova onda de reconhecimento. Um retrato sensível de resistência, talento e coragem. E o melhor: está disponível no Yotube:
Leia review no Pequenos Clássicos Perdidos e, para conhecer outros filmes, siga essa boa lista do Pitchfork de 2020.
🎞️ Botinada, a origem do punk no Brasil (Gastão Moreira, 2010)
Não é só que o Brasil não ficou de fora do punk nos anos 1970 e 80: o Brasil abraçou o punk a ponto do Sesc Pompéia fazer um festival, o Gilberto Gil lançar uma música chamada “Punk da Periferia” e bandas punk (das periferias ou não) construírem carreiras longevas e profundamente influentes para o rock brasileiro — Ratos de Porão e o Inocentes não me deixam mentir.
A história completa desse momento de ruptura com o que vinha acontecendo na MPB, nas rádios e na TV brasileira é contado no documentário do pesquisador musical Gastão Moreira, costurado por mais de setenta entrevistas e 200 horas de filmagem.
É uma das melhores coisas já produzidas pelo jornalismo musical brasileiro, e está disponível na íntegra no canal do Gastão no Youtube:
🎞️ Pistol
Criada e dirigida por Danny Boyle, essa minissérie tenta condensar o caos e o impacto dos Sex Pistols em seis episódios super estilizados, centrados no olhar do guitarrista Steve Jones. O elenco se sai super bem, especialmente Anson Boon como Johnny Rotten e Maisie Williams como a icônica Jordan. Um aspecto bonito aqui é ver como todo mundo era jovem, muito jovem mesmo.
Assisti e comentei em detalhes nessa edição de janeiro de 2023. Tem no Star+.
📖 “Mate-me, por favor: uma história sem censura do punk” (Legs McNeil e Gillian McCain)
Publicado em 1996, é provavelmente o que o punk tem de mais próximo a uma história definitiva registrada. Legs McNeil foi um dos criadores do zine Punk, e com a escritora Gillian McCain, foi capaz de reunir centenas de depoimentos para compor uma narrativa oral sobre as origens, ascensão e queda do punk, indo de Detroit até Londres e Los Angeles. O formato é um coro caótico de vozes, incluindo músicos, artistas, empresários, groupies, jornalistas e produtores musicais, acompanhando a gênese do punk desde a Nova York decadente dos anos 60 e 70, passando pela Factory de Andy Warhol, os bastidores do CBGB e do Max’s Kansas City, até alcançar o estouro da cena britânica nos anos 80. É contato de forma cronológica, com amplo espaço para todo tipo de fofoca e desentendimento, mas ainda assim capaz de capturar o espírito niilista e criativo de Iggy Pop, Ramones, Patti Smith, Richard Hell, Debbie Harry e muitos, muitos outros. Se você nunca leu, juro, comece hoje. Comece agora. Você não vai se arrepender.
Está disponível em português.
📖 “Punk!” (Antonio Bivar, 2018)
Lançado originalmente como “O que é Punk”, em 1982, dentro da histórica coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, o livro de Antonio Bivar foi o primeiro a traduzir em palavras, no Brasil, o significado do punk. Após anos figurando como raridade em sebos, foi reeditado sob o título direto e definitivo “Punk!”, com fôlego renovado, ilustrações inéditas e um posfácio de Kiko Dinucci.
Essa é uma pequena obra-prima da escrita de não ficção brasileira. Bivar, que viveu a contracultura de perto em Londres e Nova York nos anos 70, depois acompanhou a explosão da cena punk paulistana em 1982, tem o olhar de quem viu, viveu, entendeu e soube comunicar o espírito da coisa.
A nova edição (a sétima!) é um documento visual e afetivo, composto por novas sobrecapas e colagens assinadas por Angela Mendes, Ricardo Costa e Dinucci, além de um prefácio comovente escrito pelo próprio Bivar pouco antes de sua morte, em 2020, vítima da covid-19. Um tributo a esse nome fundamental do jornalismo cultural brasileiro.
🎸 “London Calling”, The Clash
Tá aqui apenas porque é minha banda preferida (perdi Ramones para um ex e nunca mais deu conta de ouvir).
Não, péra.
Lançado em dezembro de 1979, esse é o terceiro disco do The Clash, um álbum duplo (!) que representa melhor do que qualquer outro uma virada no entendimento do que o punk podia ser. Talvez o trabalho mais ambicioso e abrangente da época, ele se distancia da mítica dos três acordes, da fúria juvenil e do niilismo que marcaram a primeira leva do punk, e amplia as possibilidades estéticas, políticas e musicais do movimento.
Com 19 faixas que transitam entre punk, reggae, ska, rockabilly, jazz, pop e R&B, “London Calling” aproximou o punk dos sons negros de Londres. As letras falam de desemprego, violência urbana, alienação, racismo, consumismo, Guerra Fria e resistência política, temas que conectam o álbum diretamente ao cotidiano londrino do fim dos anos 70, marcado pela crise econômica, greves e o avanço da extrema-direita.
Nos anos 1970, a trilha sonora de Londres também vinha dos imigrantes caribenhos e africanos, que espalhavam pelas ruas os sound systems de reggae, dub e ska — gêneros que se tornaram parte fundamental da paisagem cultural urbana. O Clash reconhecia esses ritmos como formas de resistência, crítica social e identidade comunitária. Faixas como “Police and Thieves” (cover de Junior Murvin) e “Guns of Brixton” (composta por Paul Simonon, que cresceu em Brixton, bairro de forte presença jamaicana) mostram como a banda compreendia o reggae e o dub como elementos inseparáveis da luta de classes e das tensões raciais na Inglaterra pós-colonial.
🎸 “The Teaches of Peaches", Peaches
Mudando para algo totalmente diferente: o electroclash.
Nem tão diferente assim, na real. O espírito é o mesmo. Lançado em 2000, “The Teaches of Peaches,” da canadense Peaches, é um álbum fundamental para entender o espírito do electroclash, movimento musical que explodiu no começo dos anos 2000 ao misturar eletrônica crua, estética lo-fi e atitude provocadora, com clara herança do punk. Gravado de forma caseira com um Roland MC-505 e e vocais falados (mais próximos do grito do que do canto), veio como um manifesto de autonomia e sexualidade explícita.
Assim como o punk dos anos 1970 reagia à caretice do rock progressivo e à opressão social com três acordes e muita raiva, o electroclash surge como resposta à pasteurização da música pop e dos “superstars DJs” dos anos 1990. Com uma pegada performática e autoficcional, artistas como Peaches, Fischerspooner, Miss Kittin e Chicks on Speed, e selos como DFA, reinvestiram a energia do “faça você mesmo”, agora com laptops, sintetizadores e interpretações que desafiam gênero, corpo e norma.
A Peaches é punk na essência: direta, debochada e provocadora, cantando sobre prazer feminino, liberdade sexual e rejeição dos papéis de gênero com letras curtas e repetitivas, feitas para cantar junto — ou incomodar, dependendo do ouvido.
📖 Os jovens de hoje têm muito a aprender com os punks
Deu no NYT, sem paywall: punk como estratégia de sobreviência para as novas gerações.
O artigo de opinião do dramaturgo, ator e cineasta John Cameron Mitchel (do ESSENCIAL “Headwig and the Angry Inch") publicado em 11/05, fala da relevância contínua da atitude punk diante dos desafios enfrentados pela juventude contemporânea.
O punk, em sua origem, é sobre adotar uma postura abertamente antiestablishment, promover as liberdades individuais e defender a ética do "faça você mesmo". São valores que continuam se manifestando em diversas formas de expressão — mas que, no punk, precisam estar alinhados ao antiautoritarismo e à ação direta como meios de resistência.
No contexto atual, marcado por crises sociais, políticas e ambientais (crise! crise! crise!), a juventude enfrenta desafios que exigem uma postura crítica e ativa. Exigem acordar. Adotar a atitude punk pode significar questionar normas estabelecidas, resistir a sistemas opressivos (talvez principalmente os das big techs!) e buscar formas alternativas de expressão e organização.
A rejeição do fascismo, do machismo e do racismo é outro pilar fundamental do punk, alimentado ao longo dos últimos cinquenta anos por subculturas como o Riot Grrrl, o grunge, as raves. Essa rejeição expressa um compromisso contínuo da juventude com a justiça social e a inclusão. Em tempos de conformismo e apatia, a atitude punk oferece uma alternativa barulhenta — e muito bem-vinda.
Nas palavras do JCM: "estou torcendo para que os jovens incríveis de hoje encontrem o seu próprio punk, que, na pior das hipóteses, isso as faça se sentirem menos sozinhas — e, na melhor, crie uma mudança real!"
Dá pra ler, sem paywall, no New York Times (em inglês, óbvio).
🧷 Bônus: Punks em São Paulo, 1983
Raridade. Obrigada, Youtube por existir.
👁️ Leia também
Guia Paulicéia: 11 coisas para fazer em São Paulo no fim de semana
Oi, Essa é mais uma edição do Guia Paulicéia, o compilado de coisas legais para ver/fazer em São Paulo enviado semanalmente para apoiadores da Tá Todo Mundo Tentando.
Guia Paulicéia: 11 lugares no centro de São Paulo que não são no Copan e na República
Oi, Essa é mais uma edição do Guia Paulicéia, o compilado de coisas legais para ver/fazer em São Paulo enviado semanalmente para apoiadores da Tá Todo Mundo Tentando. Para receber novos posts e ter acesso a todo o acervo já publicado, faça uma assinatura com R$20/mês:
💄 Zeladoria de abril: David Lynch, Black Honey, A Boba da Corte, Spike Island
Oi, Essa é a edição de abril da Zeladoria, o envio mensal da Tá Todo Mundo Tentando com coisas legais para ler, ver, ouvir, comprar.
amei
Edição excelente.