🌲 Zeladoria de junho: especial Twin Peaks
"Entering the town of Twin Peaks, five miles south of the Canadian border, twelve miles west of the state line. I've never seen so many trees in my life."
Para ler ouvindo ▶️ “The Nightingale”, da trilha sonora original do Angelo Badalamenti com a Julie Cruise. Tá na playlist da Tá Todo Mundo Tentando no Spotify.
Oi,
Essa é a edição de junho da Zeladoria, o envio mensal da Tá Todo Mundo Tentando com coisas legais para ler, ver, ouvir, comprar.
Nem sempre dá para entender tudo na hora. Aina mais em se tratando de David Lynch.
Eu vi “Twin Peaks” pela primeira vez na Globo, adolescente, sem saber direito o que estava acontecendo, mas interessada nos looks das meninas, nos rostos dos meninos, no clima diferentão de tudo. Mas eu fui uma jovem cinéfila, que cabulou aula para ver Win Wenders na Sala Cinemateca (quando ainda era na Fradique Coutinho!), versada em filmes de terror e cinema nacional. Minha mãe sempre gostou de filmes e, em casa não havia muito tabu, eu e minha irmã víamos o que os adultos viam. Acho que isso só me fez bem.
Voltando ao assunto: David Lynch entrou cedo na minha vida, através da série e, na sequência, por Veludo Azul e Coração Selvagem — não pelo enredo, mas pela estética e pela intensidade emocional que parecia saindo direto do som. Comentei semana passada sobre as escolhas musicais que formaram minha personalidade.
O Lynch-verso formou minha personalidade pra caralho.
Só fui ver as duas temporadas inteiras já adulta, em 2017, quando a terceira temporada, criada com impressionante liberdade criativa, chegou na Netflix. A essa altura, eu já tinha lido, visto e revisto Lynch o bastante para saber que o mistério nunca se resolve, que parte da graça está naquilo que você não sabe, que precisar saber não é uma necessidade.
Mas a música, claro: a mistura dream pop e jazz espectral do Angelo Badalamenti, a voz da Julee Cruise pairando sobre tudo como se viesse de outro plano. Nada soa igual. Depois de Twin Peaks, nada foi igual.
A Zeladoria de hoje é sobre isso e vem para avisar que a partir de 13/06 as três temporadas de Twin Peaks estarão disponíveis na Mubi. Não é publi (mas se quiser, pode). É coisa de fã mesmo.
Ah, essa é a segunda edição temática da Zeladoria. A anterior foi sobre os 50 anos do punk. Estou fazendo isso apenas pelo prazer de escrever sobre as coisas que gosto.
Se ler e gostar, me conta:
E se gostar mesmo, mande para alguém que vai gostar também:
🎞️ Twin Peaks, a série original
Nos primeiros minutos logo após a estreia, em 1990, Twin Peaks parecia uma série policial como qualquer outra. Começava com a descoberta do corpo de uma adolescente envolto em plástico, à beira de um lago, numa cidade pequena do interior dos Estados Unidos.
Mas a sensação de normalidade não durou muito. O piloto embalou em menos de uma hora os elementos essenciais que marcam a estranheza da produção: clima sombrio, personagens excêntricos, atuações canastronas, humor estranho. Do nada, uma mulher carregando um tronco no colo, outra usando tapa-olho e obcecada com cortinas, menções a violência sexual, casos extra-conjugais. Corujas. Pinheiros. Donuts.
Criada por David Lynch e Mark Frost, Twin Peaks embaralhou propositalmente os gêneros novela, drama policial, thriller psicológico, comédia absurda e horror sobrenatural, realismo mágico. Como tudo na obra de Lynch, em vez de oferecer respostas, acumulava perguntas. A cada episódio, o enigma de Laura Palmer se expandia para revelar as falhas, segredos e violências de uma comunidade superficialmente pacata. A linguagem visual desafiava o padrão da televisão da época, com planos longos, silêncios, atmosferas oníricas e trilha sonora emocional e repetitiva, criando um estado hipnótico às vezes interrompido por gritos.
A primeira temporada, com oito episódios, é um clássico absoluto, super influente (Arquivo X, Fargo, Lost e o recente sucesso da Netflix, Dept Q, beberam nessa fonte) e deliciosa de acompanhar, com seu climão camp, interpretações exageradas e aquela estética 1990-com-saudades-dos-1950 que foi parar em todas as revistas de moda da década.
A segunda, com 23 episódios, é, na melhor das hipóteses, irregular. Os motivos para isso são tema de debate, ainda hoje. Lynch e Frost perderam a mão? Um projeto desse tipo era inviável? Entregar o assassino de Laura Palmer matou o interesse do público?
Não importa. Com trinta episódios, Twin Peaks mudou o que se entendia por narrativa televisiva e deixou uma legião de fãs e criadores que continuam achando difícil explicar com exatidão o que é Twin Peaks — leal ao criador, a impossibilidade de definição é sua força maior.
🎞️ Twin Peaks: a Limited Event Series
Vinte e cinco anos depois, Lynch voltou a Twin Peaks com uma nova proposta: não exatamente uma continuação, mas uma reinvenção radical da série original.
Lançada em 2017 na Netflix como Twin Peaks: The Return, tem 18 episódios dirigidos por Lynch, que derramam sem dó tudo que o criador acumulou em sua carreira de cineasta e artista visual desde então. É uma experiência densa, enigmática, corajosa e desconcertante: uma das criações mais ambiciosas já feitas para a TV. Sério.
Em vez de retomar os personagens no ponto em que os deixamos, a série embarca em jornadas paralelas, deslocamentos no tempo e no espaço, apresentando múltiplas versões da mesma identidade. Dale Cooper retorna, mas não como antes. Laura Palmer volta a aparecer, mas não é simples. O famoso oitavo episódio, por exemplo, é um filme experimental sobre a origem do mal nos Estados Unidos. O ritmo é lento, a linguagem é fragmentada e cada cena habita um universo próprio, onde o espectador precisa montar suas próprias conexões — ou não, você pode só ver e curtir a viagem sem tentar encontrar explicações.
Mais do que uma série, The Return é uma obra de arte audiovisual. Reúne atores antigos e novos, usa imagens novas e de arquivo, evoca o trauma como tema central e oferece sensações no lugar de respostas, levando quem quiser vir junto num mergulho profundo.
🎞️ Twin Peaks: Fire Walk With Me
Lançado nos cinemas um ano após o fim abrupto da série, Fire Walk With Me (no Brasil: Os Últimos Dias de Laura Palmer) narra a última semana de vida de Laura Palmer.
Foi recebido com frieza, vaiado em Cannes e massacrado pela crítica. Depois, acompanhando o prestígio da carreira de Lynch, foi ressignificado e, hoje, é considerado uma peça fundamental do universo Twin Peaks. ALém disso, é e uma das obras mais intensas de David Lynch.
Ao contrário da série original, que flertava com o mistério e o humor, o filme mergulha sem filtros no horror do abuso, do trauma, do vício e da perda de identidade.
Laura, interpretada com entrega brutal por Sheryl Lee, deixa de ser apenas um mistério a ser resolvido para se tornar uma personagem complexa, viva e dilacerada. A trilha sonora de Angelo Badalamenti, já essencial na série, ganha mais densidade, com temas que oscilam entre o etéreo e o claustrofóbico.
É um filme violento, gráfico e profundamente triste, que reposiciona toda a mitologia de Twin Peaks, colocando o trauma de Laura no centro da história, preparando terreno para entender os vazios, as ausências e os fantasmas que assombram a cidade.
🎞️ Twin Peaks: The Missing Pieces
Vinte anos depois de Fire Walk With Me, Lynch voltou ao material bruto do filme e editou uma coletânea de cenas cortadas da versão original.
The Missing Pieces é um epílogo expandido — ou, na tradição do diretor, um conjunto de portais que aprofundam e ampliam as possibilidades da narrativa. É mais uma montagem de fragmentos do que uma história com começo, meio e fim, incluindo extensões do que já foi visto, com cenas inéditas. Há momentos com personagens coadjuvantes que ganham mais camadas, explicações visuais que não estavam claras antes, e diálogos que reconfiguram o tom de certas partes da história. Lynch nunca trata essas cenas como “sobras”. Pelo contrário, há uma reverência na forma como ele as apresenta, com cortes limpos e uma montagem que respeita o tempo e o mistério de cada imagem. Não é essencial para entender Twin Peaks, e é provavelmente descartável para quem não é fã.
Também estará disponível na MUBI, com o restante do acervo — disponibilizando, pela primeira vez, o ciclo completo para quem quer revisitar ou descobrir Twin Peaks com todos os seus caminhos laterais. Além disso, é único dessa lista que eu não vi!
📖 O Diário Secreto de Laura Palmer, Jennifer Lynch
Escrito pela filha de David Lynch, entre a primeira e a segunda temporada da série, como um desdobramento oficial, fingindo ser o diário íntimo da personagem título, encontrado pela polícia no curso da investigação. É um mergulho perturbador na mente de Laura, em primeira pessoa, revelando suas experiências com drogas, sexo, violência, medo e a sensação constante de ser controlada por forças que não compreende.
O diário foi um best-seller imediato, mas também é um texto literário desconcertante. A escrita de Jennifer Lynch acerta o tom de uma jovem em colapso e constrói, com detalhes cruéis, a espiral de abuso que a série apenas sugeria. Há passagens difíceis de ler, e outras tocantes de fragilidade tocante, como a Laura da Sheryl Lee.
O efeito é inegável: quem já viu a série passa a ver Laura como alguém de carne e osso, uma menina que tenta resistir ao apagamento. Quem ainda não viu, ganha uma chave emocional potente para o que vem pela frente.
Leia crítica no Plano Crítico.
📖 The Final Dossier, Mark Frost
Publicado logo após The Return, em 2017, é o segundo livro oficial escrito por Mark Frost, cocriador de Twin Peaks, e funciona como uma espécie de epílogo em prosa que pode (ou não!) ajudar a dar sentido aos acontecimentos da terceira temporada.
No formato de relatórios do FBI, compila observações da agente Tammy Preston sobre diversos personagens da série, revelando o que aconteceu com cada.
Ao contrário de A História Secreta de Twin Peaks, primeiro livro de Frost (mais enciclopédico e labiríntico), The Final Dossier é direto, narrativo e tem um ritmo fluido, oferecendo algum grau de orientação para algumas das reviravoltas. Mas não todas. Afinal, é importante que fique a sensação de que aquilo que é dito talvez não seja exatamente o que aconteceu.
Ainda assim, é um presentão para quem se apega aos personagens e quer saber como Donna, Audrey, Sarah, Bobby e os outros habitantes do universo Twin Peaks
🎧 Critics at Large: David Lynch’s Unsolvable Puzzles
Neste episódio gravado logo após a morte de Lynch, no começo de 2025, o trio de críticos culturais da New Yorker (e meus amigos imaginários) Vinson Cunningham, Naomi Fry e Alexandra discutem o legado do cineasta com foco especial em Twin Peaks e na ideia do enigma como linguagem.
Disponível apenas em inglês, no site da New Yorker e no Spotify:
🎷 Bônus: Playlist com todas as musicas de todos os filmes do David Lynch
🎷 Obrigada por ler até aqui!
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Esse "e meus amigos imaginários" me quebrou
Nossa, que maravilha. É tempos de rever e encarar o que tinha ficado pra trás como preguiça. Minha relação com Twin Peaks começou tardiamente, pela curiosidade de eu ter nascido no famoso dia 24 de fevereiro, quinze minutos depois das 11:30 A.M.
Não sei se você já viu isso, mas fizeram há muito tempo um deck de tarot simplesmente genial com as personagens:
http://www.benjaminmackey.com/magicianlongstoseetarot