Tá Todo Mundo Tentando: ayurveda
Eu só queria um óleo para massagear meu joelho, e de repente estou negociando uma experiência cultural para turistas.
Para ouvir lendo → "trilho do trem” da Schlop, alcunha da Isabella Pontes em projeto solo. O disco chama “canções de amor para o fim do mundo” (assim, em caixa baixa) e acabou de sair nos streamings. É tão lo-fi/indie quanto uma proposta lo-fi/indie pode ser, com a voz suave da Schlop cantando sobre a própria vida por cima de guitarras e efeitos. Pra mim, é perfeito.
Oi,
Estive na Índia só uma vez, em 2014. Foi uma viagem formativa: eu estava aprendo a viajar e a escrever. Os textos da época (assim como os que fizeram o “Mas Você Vai Sozinha?” em 20161) são simpáticos e bem-intencionados, com a insegurança normal de quem não tem certeza do que quer dizer. Tudo bem. Existe um estranhamento da passagem do tempo também, porque o mundo mudou demais nessa década. E existem, ainda, uma gratidão de ter escrito essas coisas — eu nem lembrava dos problemas digestivos que me levaram até o Sr Gurakal no Kerala em 2014. O registro ficou porque escrevi. E como escreviescreviescreviescreviescrevi que nem doida nesses anos todos, hoje fico mais confortável com a minha escrita, tendo certeza que a Gaía de 2034 vai ler isso com a mesma paciência amorosa com que olho pra minha versão de 2014. Tô no meio do caminho.
Bom finde,
g.
A farmácia em Kumily
Meu avô dizia que o caráter de um homem se reconhece na firmeza do aperto de mão. Seu Sebastião aprovaria o senhor Gurukal, que aos 80 anos exibe vitalidade ayurvédica apertando com força minha mão no instante em que adentro sua farmácia numa rua comercial de Kumily, região de Tekkadhi, nas montanhas de especiarias do sul da Índia, onde às vezes o vento tem cheiro de cardamomo e noz-moscada.
Entrei na loja buscando algo para tratar meu joelho esquerdo, constantemente dolorido e agora, no vigésimo e tanto dia de viagem, já inchado e perigando dar ruim. Começo a explicar, mas sou interrompida: Rajan está apertando meu braço. E apertando bem. “Você precisa de massagem de verdade, não de massagem para turistas”. Pode ser, agradeço, mas não quero massagem, quero apenas comprar algum remédio. Ele se conforma e vai buscar algo, óleos?, num armário de vidro. Volta com três garrafas verdes com rótulos ilustrados.
Após rabiscar rapidamente o preço em rúpias num pedaço de jornal, Rajan está volta ao meu braço. “Minha massagem energiza as veias, é boa para juntas, dores de cabeça, dores musculares,” continua. “Muitos clientes estrangeiros, clientes famosos!” Ele me puxa pelo braço na direção de um mural de fotos. Algumas estão lavadas pelo tempo, mas todas mostram seu Rajan ao lado de ocidentais sorridentes. Na maior, plastificada, o mestre abraça um homem musculoso com cabelo escovado para o lado, exibindo todos os dentes. “Hollywood!”
Penso em explicar que nunca vi, mas Rajan não deixa: ele já está abrindo um enorme caderno de capa grossa, onde clientes deixam recados. Tento folhear, mas a atenção já mudou para a fotografia de senhora loira em êxtase sendo massageada por duas indianas – no Kerala, mulher faz massagem em mulher, homem faz massagem em homem. A prática cross-gender, mesmo que com fins medicinais e a seriedade adequada, é considerada imoral. Compreensível, sendo a massagem ayurveda uma coisa tão sem pudor em tocar seios e nádegas, e os indianos uma gente tão preocupada com a modéstia.
Demoro a notar que há mais duas pessoas na pequena sala: um senhor sentado no cansado sofá marrom, encostado no canto entre duas prateleiras apinhadas de frascos e potes, e a senhora Gulakkal, vestindo um sári verde-escuro, que sorri para mim num namaskaram tímido e me faz sinais com as mãos, me convidando a seguir com ela para dentro da casa.
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