Tá todo mundo tentando: criar manhãs tranquilas
Sempre sei como o dia começa. Tem sido assim aí também?
Pra ouvir enquanto lê: “These Days” da Nico.
Há alguns anos tento abraçar a rotina de acordar cedo para atrasar com calma. É um gosto que não veio naturalmente, sempre tive que lutar pra acostumar a manter o olhos abertos quando gostaria de dormir mais meia horinha. Só em 2020 entrei de vez no modo velha senhora: acordo sem despertador, não raro antes das seis.
Quando me tornei mãe, há mais de década e meia, dormir até tarde não era opção. Quem tem filho sabe: só dorme quando o bebê dorme. Como minha cria tinha o ritmo determinado pela luz do sol, fui emprestando o hábito de acordar a cada começo de dia. Dei umas escorregadas nos anos seguintes, retomei o bom hábito quando o moleque começou a estudar de manhã, depois perdi o ritmo de novo. E voltei, acho que de vez. Não só porque por dentro eu tenho 95 anos, mas também porque a pandemia instituiu certo prazer em viver manhãs tranquilas,ter umas duas horinhas pra me sentir bem antes de lembrar que o mundo tá desabando.
É verdade que é gostoso estar acordada de madrugada, e é verdade que tive na vida períodos notívagos bem divertidos. Mas hoje a organização de rotina como estratégia de saúde mental é necessidade maior, então por volta das seis abro os olhos pra ver pela janela a antena laranja da Paulista no céu cor de grafite. Ouço os ônibus circulando na avenida e sinto a abstinência do café bater. Levanto, me peso na balança mecânica do banheiro, boto roupa (durmo sem) e abro a porta do quarto para ver os gatos esperando. Eles andam comigo pelo apartamento enquanto abro as janelas, que é bom pra arejar a casa sem o barulho e poeira do horário comercial. Bebo água do filtro enquanto a Jezebel morde meu pé, boto a chaleira pra ferver, coloco ração fresca, molho as plantas, acendo incenso no altar — dependendo do dia, acendo vela também.
Trituro os grãos de café no pequeno moedor manual que comprei tem uns dez anos e continua funcionando como no primeiro dia. Com o café pronto, sento na mesinha azul, sempre com uma xícara grande e cheia, às vezes com caderno/caneta, que não raro ignoro. A primeira xícara de café logo após acordar é tão satisfatória que raramente faço uma segunda. Fico com ela enquanto tento ler e escrever até dar fome. Resultado de cozinhar todos os dias, não me preocupo muito com horário e só como quando sinto fome. Privilégio e tanto.
Pra tentar evitar a desesperança reinante, tenho exercitado lembrar ativamente algo bom que me espera no dia. Totalmente gratiluz, e funciona, é uma forma de espantar a má vontade e ir em frente. Normalmente os dias não tem nada demais, eu que invento. Pode ser aquele texto pra terminar, aquele livro pra começar, aquela aula pra assistir. Escrever tem aparecido muito.
Talvez por estar escrevendo com liberdade de tema e com frequência diária, a idéia de sentar na frente da máquina voltou a ser prazer. Um amigo diz que não é possível que eu escreva tanto e não tenha um livro nas mãos. Querido: você está errado, é possível sim, é tão possível que é exatamente isso que ando fazendo – escrevendo sem critério ou motivo. Tirando os textos semanais pra newsletter, não tenho qualquer fim ou prazo em mente. Escrevo só porque é um encontro com algo que me deixa feliz.
Gostar de escrever agora não significa que será sempre assim. Já falei escrevi por aqui antes: segurança é ilusão. Mas serve como um bem-vindo lembrete para aproveitar o que tem enquanto é.
PS: Coisa parecida acontece quando bato olhos as pilhas de livros ainda não lidos, que não cabem mais nas estantes. Entendi que ler/escrever de manhã, antes do dia começar a me atrapalhar, funciona bem. Porque essas manhãs a partir das seis, (às vezes cinco e meia) são a única hora do dia em que não sinto ansiedade. Aprendi a criar manhãs tranquilas, ainda mais agora que reposicionei uma poltrona ao lado da janela da sala, onde durante o outono o sol bate de leve até o meio-dia. Pra isso às vezes até passo um segundo café.
“Solidão e Companhia”, Silvana Paternostro.
História oral que conta a gênese de “100 Anos de Solidão” e o enorme sucesso de Gabriel García Marquez na voz das pessoas que estiveram perto dele. Escrito a partir de uma reportagem, tem depoimentos da “turma” de Gabo (ou Gabito) em Barranquila e dá versões para acontecimentos como a treta com Vargas Lllosa, a amizade com Fidel Castro e a excursão para receber o Nobel em 1982. É um livro pra quem é muito fã de García Marquez — meu número demais.
“Caffeine”, do Michael Pollan.
Aproveito que falei sobre café para recomendar o audiobook do escritor-pesquisador Micheal Pollan sobre a história da cafeína. Começa com uma aulinha de biologia, explicando como a cafeína se desenvolveu e porque ela afeta nosso corpo, e acaba com umas aulas de história que explica o papel do café e do chá nos processos de colonização e na Revolução Industrial. Mas a melhor parte é acompanhar o Pollan descrevendo o efeito de uma xícara de café após três meses de abstinência. É em inglês, e comentei melhor no Medium.
Nina Horta via Luiza Fecarotta.
A Folha comentou em janeiro passado os cursos da jornalista Luiza Fecarotta sobre a banqueteira-cronista-musa Nina Horta. Fiquei com o interesse na cabeça e me matriculei na turma de abril, que acabou de acabar. Ao longo de quatro aulas a Luiza expõe ideias e referências tanto sobre a obra da Nina quanto sobre o ato de comer e de pensar a relação entre comida e literatura. Delicioso, enriquecedor e de quebra me inspirou a voltar a cozinhar frango ensopado de domingo. O melhor jeito de saber sobre próximas edições de cursos da Luiza é pelo Instagram dela.
Debora Lopes “sem condições emocionais de estar online”.
A colega gostosa-intelectual-de esquerda Débora Lopes segue escrevendo as melhores crônicas em caixa baixa do Medium Brasil. A dessa semana tem “My Love” do Wings. Emocionei. Só os romântico online \o/
“O Nariz”, de Gógol, pela Antofágica.
A Antofágica é uma simpática editora do Rio de Janeiro que relança obras em domínio público em novas traduções, edições bonitas de capa dura, ilustrações e comentários de convidados. Chegou aqui um lançamento recente, o clássico de Nicolau Gógol em que um homem acorda sem seu nariz – ou o nariz acorda sem seu homem, enfim, fica aí o questionamento.
Newsletter Ao Ponto, do Rafael Tonon
A edição mais recente da newsleter do jornalista especializado em gastronomia Rafael Tonon é sobre “As Revoluções na Comida”, livro que lança agora em maio. Vale demais gastar uns cliques lendo as edições anteriores, em que ele fala sobre comida na televisão, sobre a relação entre aroma e desejo e dá um toco na “bourdainização da comida autêntica”.
Sofrência.
Não sei vocês, mas eu tô totalmente nessa energia aqui, cigarro incluso:
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Eu sempre sei como meu dia começa. Tem sido assim aí também?
Lendo essa news hoje por causa do link no texto desta semana e me conectando real com a rotina que vivi na pandemia. O prazer da casa vazia, de acordar horas mais cedo que meu companheiro para ficar “sozinha” com meu café e minha leituras não tinha preço ❤️
Me identifiquei um bocado com esse texto. Apesar de continuar me considerando notívago e adorar as madrugadas, pra mim, planejar e organizar as manhãs, saber como meu dia começa, tem ajudado muito nessa quarentena infinita que estamos vivendo. Lendo seu texto sobre café lá no medium me fez pensar nesse papel importante que a bebida tem na minha rotina também. Em abril fiquei um mês sem tomar (por questões médicas) e foi pior do que ficar sem chocolate (meu outro vício), porque isso quebrou completamente minha rotina e, muitas vezes ficava sem saber como ia ser minha manhã. Agora que voltei, vi que não abro mão de ter esse pequeno prazer - que o possível nesse momento de tantas restrições -, mesmo que não me faça tão bem. Principalmente nos finais de semana, quando faço minha xícara de café, coloco minha playlist pras manhãs (que também tem These Days) e sento pra ler você e a Patti Smith. Enfim, não consigo acordar tão cedo assim, mas cada vez mais aprecio meus pequenos rituais da manhã.