Tá Todo Mundo Tentando: ser o Bourdain
Memórias e uma porção de links para lembrar o chef/celebridade, que faria 69 anos.
Para ouvir lendo: “Roadrunner”, do Modern Lovers. Uma escolha meio óbvia, mas bem digna. Tá na playlist da Tá Todo Mundo Tentando no Spotify.
Oi,
Uma coisa interessante que apareceu nas falas das amigas e colegas newsletteiras num encontro na semana passada foi a ideia da newsletter periódica como um lugar para investigar as próprias obsessões, com o apoio de um leitor imaginário. Um território seguro (ou pelo menos estável) para elaborar assuntos que voltam sempre.
Por isso tenho explorado outros formatos na newsletter em edições recentes - falar sobre punk, sobre techno, sobre David Lynch, sobre sapatos, sobre o Centro (ainda) não gentrificado de São Paulo.
É uma forma de lembrar que esse espaço está sempre em construção. E de explorar assuntos que de fato me interessam.
O Anthony Bourdain é um desses assuntos. Não porque eu acompanhasse tudo que ele fazia, ou achasse que era um modelo de alguma coisa. Mas porque tem algo na figura desse cara que viajou, comeu, escreveu, tentou, falhou e, enfim, se perdeu, que me acompanha há mais de vinte anos, que sigo trazendo comigo, tentando contornar a mitificação da figura trágica que ele se tornou. Não por acaso ele segue como assunto de livros, documentário, artigos - eu liso alguns lá no final dessa edição.
Saber que há um filme sobre a vida dele em produção não ajuda muito. Mas pelo menos é da A241. E, por outro lado: nada mal para um ex junkie que achou que a vida tinha acabado aos 40, não?
Boa leitura e até semana que vem,
g.
(Escrito em 25 de junho de 2025, dia em que Anthony Bourdain faria 69 anos.)
A primeira vez que ouvi falar do Anthony Bourdain foi com o livro “A Cook’s Tour”, traduzido aqui como “Em Busca do Prato Perfeito”. Comprei na extinta Fnac da Paulista, sem saber quem ele era, em 2003.
Na época eu andava lendo muito sobre comida, cozinhando em casa. Levei o livro comigo numa viagem de fim de semana. Devorei de um dia pro outro. Achei caótico, saboroso, informativo, engraçado. Meio gonzo. Um tanto arrogante, muito direto e sem frescura. Era sobre comida e sobre viagem, mas também era sobre fome, desconforto, exposição, culpa, prazer, cansaço. Ele nem de longe era celebridade que viria a ser. Era, ainda, um Bourdain punk, desconfortável em seu papel de âncora de TV, feliz com o papel de escritor, deslumbrado com as possibilidades de viver viajando e comendo, com a ideia de ter uma sobrevida.
Foi por causa do livro que cheguei na série “A Cook's Tour”2 (que depois ganhou banho de loja e se tornou o “No Reservations”3, que depois ganhou umbelo orçamento e virou o “Parts Unknow”4, na CNN) e desenvolvi uma fixação com a figura. Não fui só eu: muita gente desenvolveu uma relação parassocial com o Bourdain, ignorando seus assumidos defeitos para idealizar alguém que, na real, era só um cara pé no chão que soube aproveitar oportunidades.
Mas o que me interessava era menos o aspecto bon vivant e mais o arco de vida que não seguia o modelo. Me interessava porque me identifiquei. Ele teve uma juventude errada. Usou drogas, fez merda, se meteu em encrenca. Era um cara que, por volta dos 40, já tinha aceitado que a vida provavelmente não iria muito além de cozinhar em um restaurante apertado, encontrando prazer em ler bons livros, ver bons filmes, ter um relacionamento sadio, talvez beber com os amigos depois do expediente, acordar de ressaca no domingo para fazer brunch pra gente rica, repetir tudo na semana seguinte.
Mas aí… como num conto de fadas, ele escreveu um (bom) artigo na New Yorker5. Esse artigo explodiu e virou um livro, esse livro vendeu bem e rendeu convite para uma série de TV - caso raríssimo de escrita que muda a vida.
E inspira, porque o Bourdain não era um gênio prodígio, não era um homem com um plano, não tinha uma lição de produtividade por trás. Era um sujeito cansado, fiel às suas obsessões, falido em vários sentidos, mas que mudou de pista sendo leal a si mesmo, escrevendo. Inventando um personagem pra si. Um personagem que era ele, mas também não era, e que o mundo todo comprou.
E tinha estilo, claro. Bom gosto para livros, filmes, musica, as coisas que importam. Tinha humor. Se posicionava, sem vergonha de ser impopular, de parecer esquisito, de se contradizer, de ser cricri. Arrogante, mas vulnerável. Elegante, mas desleixado. Sarcástico, mas sem ser cruel. Virou o homem que viajou o mundo, bebeu e comeu de tudo, fumou o que deu, e falou muito. Falou bonito, falou errado, falou demais.
Era fácil gostar do Bourdain personagem, o cara que comia escorpião no Vietnã e depois citava Camus numa conversa em Buenos Aires. Mas ficou difícil lidar com o que ele deixou sem resposta.
Se fosse vivo hoje, seria uma figura pública muito interessante. Gosto de pensar que ele detestaria tech bros, over comsumption, microtrends. Que talvez, tivesse se tornado um cara mais interessante do que parecia estar sendo ali no final.
Porque, no final, a pergunta que ficou não é por que ele se matou, mas por que ele não conseguiu ficar. Ele era o cara que parecia ter dado certo, mas havia uma angústia que nunca saiu da frente da câmera. Ele tentava. Parecia saber que ser “curioso” não basta, que é preciso estar disposto a se deixar afetar. Às vezes conseguia, às vezes, não. O legado que deixou foi mostrar que viver é desconfortável e que é totalmente possível perder para a própria vulnerabilidade.
Tem algo de covarde em transformar o Bourdain num mártir da autenticidade ou num anti-herói pop. Ele era um homem branco famoso com um programa de TV na mão. Isso lhe deu acesso a quase tudo. Mas também carregava vícios, arrogâncias, e incômodos que os roteiros não editavam.
No final, mesmo tendo “o melhor emprego do mundo”, era um cara como qualquer um. Se apaixonou pela pessoa errada, como tanta gente faz. E não conseguiu sair dali. A relação virou palco pros lados piores dele: a paranoia, a melancolia, a ansiedade crônica. Aflorou o que não era bonito. Depressão antiga, ressentimentos acumulados, solidão mesmo cercado de gente, tédio e frustração”.
Tem um livro do Tom Vitale, que foi diretor dele durante anos, chamado “In the Weeds”, que derruba algumas romantizações tanto sobre o homem quanto sobre como o programa era feito - se você achou que o Obama só chegou e sentou num banquinho em Hanoi pra trocar ideia, achou errado. Saiu no Brasil como “Em Maus Lençois”, pela Tordesilhas, e é o melhor relato sobre o Bourdain que eu li (e eu li todos, tem recomendações no final desse email).
O Vitale faz seu melhor para mostrar as diferentes faces e as muitas dificuldades do cara que foi seu herói e suplício na mesma medida. Fala de um homem cansado, difícil, que odiava filmar mas não podia parar. Que pedia mas não sabia aceitar ajuda. Uma pessoa adulta e bem-sucedida mas incapaz de lidar direito com os caminhos que abriu, e com os que fechou.
Não é confortável ler. Mas é importante.
Porque, no fim, é muito sintomático (pra não dizer revelador) que o Anthony Bourdain tenha escolhido se matar por causa de uma dor de amor. No meio de uma viagem ao interior da França. Acompanhado de um de seus melhores amigos. Durante as gravações de mais um episódio. Ele, que tinha visto tanta coisa, que tinha comido em tantos lugares, que já tinha passado por tanta coisa - foi o coração partido que, enfim, o fez dizer chega de forma definitiva.
Quer coisa mais humana do que isso?
💌 Newsletter amiga da semana: beet/nick
Depois de quatro anos fazendo essa newsletter que você estálendo agora, tem sido muito legal começar um projeto do zero.
A Beet/nick é a newsletter da Beet, a agência de comms onde sou head de conteúdo digital desde o começo de 2024, e é cria do interesse do time por questões da comunicação atual.
É um espaço para falar de trends corporativas, mudanças em plataformas, dar dicas de podcasts ou repartir insights de eventos.
Acabou de começar, tá bem legal e se você gosta do que eu faço no Guia/TTMT, vai gostar dessa também.
Pode ler, assinar, compartilhar em:
🎥 Mais Bourdain: três episódios essenciais
Beirute, Líbano (S02E14)
O momento da virada, em que Bourdain e equipe entendem que um programa de viagem não é suficiente: quando a guerra interrompe a gravação, e o episódio vira sobre estar no lugar errado, na hora exata. Esse foi o episódio que o Bourdain não queria colocar no ar, e que no final colocou o “No Reservations” em outro patamar Tem no Vimeo - se alguem achar no Youtube me avisa?Congo (S01E08)
Na primeira temporada de “Parts Unknow”, na CNN, Bourdain tenta seguir os passos de Joseph Conrad em “O Coração das Trevas” e de Coppola em “Apocalipse Now” e sai com mais perguntas que respostas.Salvador, Brasil (S05E05)
Nenhum dos episódios de Bourdain no Brasil são especialmente bons, mas todos têm um lado afetivo gostosinho de acompanhar. O de Salvador é o mais genuíno.
📔Mais Bourdain: três livros escritos pelo próprio
"Cozinha Confidential" (2000)
O livro que deu origem ao mito. Bastidores das cozinhas, drogas, arrogância, e a real brutalidade da vida em restaurante."No Ponto" (2010)
Livro de acertos de conta. Com os outros, com a fama, com ele mesmo. Tem capítulos excelentes e um epílogo que conta o que aconteceu com os personagens do livro de 2000."Appetites" (2016)
Livro de receitas e vida doméstica. Feito quando virou pai. Uma tentativa de normalidade, com receitas caseiras. É um lembrete de que antes de tudo Bourdain era um cozinheiro.
📘 Para saber mais sobre o Bourdain
"Bourdain: The Definitive Oral Biography", Laurie Woolever (2021)
Quase cem entrevistas com gente próxima. Mostra várias versões: o amigo, o chefe, o ex, o pai ausente."Miserável no Paraíso", Charles Leerhsen (2022)
Livro sem autorização da família. Usa emails, mensagens, e pinta o retrato mais áspero, e talvez mais sincero.
“Anthony Bourdain and the Power of Telling the Truth”, Helen Rosner na New Yorker (2018)
Um dos primeiros textos após a morte. Sobre honestidade e o risco de virar ícone.“Roadrunner”, Morgan Neville
Partindo de seus muitos programas, cenas inéditas, filmes caseiros e o testemunho de quem o conheceu, o documentário expõe Anthony Bourdain e revive suas aventuras, tanto em suas viagens quanto em sua vida privada. Levantou questões como o uso de IA para narrar trechos póstumos6, e o uso de emails e mensagens privadas.
🔔 Veja também
🧤 Guia Paulicéia: 11 coisas para fazer em São Paulo
Oi, Essa é mais uma edição do Guia Paulicéia, o compilado de coisas legais para ver/fazer em São Paulo enviado semanalmente para apoiadores da Tá Todo Mundo Tentando.
🌲 Zeladoria de junho: especial Twin Peaks
Para ler ouvindo ▶️ “The Nightingale”, da trilha sonora original do Angelo Badalamenti com a Julie Cruise. Tá na playlist da Tá Todo Mundo Tentando no Spotify.
🧷 Zeladoria de maio: Death, Clash, Botinada, Peaches e tudo que cabe nos 50 anos do punk rock
Para ler ouvindo ▶️ “Lover’s Rock”, do Clash, a única banda que realmente importa. Tá na playlist da Tá Todo Mundo tentando no Spotify.
Bom fim-de-semana!
Como sempre, para falar comigo é só me responder esse email ou deixar um comentário:
True story. Tá em produção e, diz, tem o Dominic Sessa (“The Holdovers”) no papel título. Leia no Gizmodo.
Foi a estreia do Bourdain na TV, dá pra ver as duas temporadas no Youtube.
Todos os episódios do No Reservations do Travel Channel também estão no Youtube.
Começou na CNN em 2013. Tem no Youtube.
Chama “Kitchen Confidential”, um artigo engraçado-abusado sobre o submundo das cozinhas dos restaurantes nova-iorquinos. Saiu em 1999 e dápra ler no site da New Yorker.
Eu que traduzi "Em Busca do Prato Perfeito", é a única da dúzia de livros que traduzi que eu gosto, mas ele era um chato. Quando veio a SP me perguntaram se queria encontrá-lo e eu disse nāo.
"bom gosto para livros, filmes, musica, as coisas que importam" te amo gaía <3 e seus textos me fazem te admirar mais, querer ser mais amiga ainda!