Tá Todo Mundo Tentando: sonhar
Dorothy Parker, Natalia Ginzburg, Millôr Fernandes, Vivian Gornick. E outras coisas mais.
Para ouvir lendo (e acordar): "Dreaming", do Blondie.
Ontem, na cama, tive uma ideia para a crônica da semana. Dormi pensando nela. Frases perfeitas e colocações instigantes se formaram na minha cabeça sonolenta que, engolida pelo travesseiro, desligou. Hoje pela manhã, esquentado as mãos na xícara de café, em pé na cozinha, fiz todo um esforço mental para lembrar — nada. Mas lembro com alguma nitidez do sonho da noite, algo envolvendo penhascos e árvores enormes que caíam em um rio grande e bravo, me obrigando a correr terreno adentro para não ser levada pela enxurrada.
Cenas desse tipo, com águas bravas que destroem e arrastam coisas, estão nos meus sonhos desde que me lembro. Já tive fases de sonhos com tsunamis, rios de dimensões oceânicas onde se equilibram casas inteiras, mares gelados que engolem embarcações. Talvez até tenha sonhado com riachos simpáticos ou lagos bonitos, mas não lembro. Sei que às vezes aparecem também curvas de rio onde tento acampar, e lembranças muito vivas das praias do sul da Bahia que frequentei ali na virada dos anos 90 pra 00, quando eu era jovem e tudo era possível.
Acordar e pensar no que sonhei faz parte da minha rotina. Há anos, sou adepta de não levar celular para a cama, e mesmo de manhã demoro um pouco para despertá-lo. Gosto de acordar devagar e despreocupada, e gosto de pensar nos meus sonhos quando a mente ainda não despertou por inteiro. Nunca consegui, como indicam alguns psicólogos ou psicanalistas, sentar e escrever de forma detalhada sobre o que sonhei. Mas penso neles, nos sonhos, buscando padrões e algum entendimento sobre o que dizem sobre a minha vida. Durante anos, sonhei com a casa antiga dos meus avós, sempre sonhos tristes em que me escondo ou tento fugir de algo, a casa sempre um lugar de penumbra e perigo, de onde é preciso escapar ou se proteger — uma imagem que não reflete a lembrança real do mundo desperto. Mas os sonhos, dizem, sabem daquilo que a gente não sabe.
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Uma amiga que escreve diz que quando sem assunto basta “dar uma volta pela cidade”. Meu anjo, faz tempo que você não vem a São Paulo? A cidade, minha cidade, aparece em quase tudo que escrevo ou já escrevi. Ando, de novo, muito dentro de casa. Os anos estão sendo bem produtivos aqui dentro e está difícil fazer a Vivian Gornick1 lá fora, andando nas calçadas e pensando nas coisas da vida. Mas os anos não estão sendo bons com a cidade, e lá fora encontro ruindades demais, demolições, miséria e lixo que me afetam de um jeito pouco inspirador.
O que me parece genial em São Paulo, hoje, é aquilo que não ando explorando a fundo: as dezenas de festas e bares e shows e mostras e lançamentos e debates e feiras e leituras e outras coisas legais que acontecem, quase sempre a noite, quando tenho sonho, e que fazem de São Paulo, São Paulo. O Programa Cultural da Semana, o que posso fazer, não dá conta da dimensão dessa Babilônia em 2023. Consumo a cidade em gotas homeopáticas — uma exposição aqui, um cinema lá, sempre bem acompanhada. Festas cheias de gente, jamais. Um balcão e um copo, sempre.
Emulo o que imagino da Dorothy Parker tardia, tentando viver uma maturidade tranquila da porta para dentro, com seus bichos, livros e textos. A senhora Parker depositava todo seu amor nos outros. Amava o marido bonito, os cães, a bebida, as festas, as causas que adotava. E tinha pouquíssimo amor para si mesma, quase nada. Mesmo a escrita, que a definiu e sustentou ao longo da vida, ela não amava muito: quando perguntada por que escrevia, respondeu “preciso de dinheiro, darling.”2
Guia Paulicéia
Outras coisas
Para ouvir: Newsletter Economy, reportagem seriada em podcast do
e Paulo Emediato sobre a história, as lições e as perspectivas de onze autore/as de newsletters pt-br. Tem eu, a Monique Evelle, o a o , o Meio, a Amanda Graciano e outros. Os episódios costuram os depoimentos ao redor de temas pertinentes. Começando do começo:Para ler: A lista de leituras futuras tomou forma de duas grandes colunas de livros apoiadas na parede da sala. O motivo é o de sempre: trabalho demais. Nos momentos de lazer ando vendo muitos filmes, e dormindo. Não me cobro. Sei que nunca haverá tempo suficiente para ler tudo e, em se tratando de lançamentos, tenho a sensação de que os livros estão sendo muitíssimo divulgados, recomendados e analisados por gente que tem mais jeito para falar deles do que eu. Mas, de toda forma, recentemente empolguei com um recebido literário, o triste e bonito “Todos Os Nossos Ontens”, de 1952, da italiana Natalia Ginzburg. É a história de uma família durante o fascismo italiano e a Segunda Guerra Mundial, com personagens barbaramente cotidianos vivendo suas vidas em meio ao indizível. Gosto muito de livros em que a história civil se mistura aos acontecimentos dos personagens (McEwan, Ferrante, Min Jim Lee, Rushdie e outros), talvez porque dê verniz verossímil ao extraordinário, talvez porque me ajude a entender contextos que não vivi — e não é pra isso (também) que a literatura serve? Conheça/compre na Dois Pontos.
Para ver: Millôr Fernandes foi um artista sem paralelo — no Brasil ou em qualquer outro lugar. Teve uma carreira de sete décadas de intensa atividade como desenhista, chargista, tradutor, escritor e dramaturgo. Foi também um exímio frasista, talvez nosso melhor, e um determinado arquivista da própria vida, guardando tudo que produziu em gavetas e estantes organizadas por temas. Parte do enorme acervo deixado por Millôr foi disponibilizado essa semana no site do Instituto Moreira Salles, como celebração do centenário do artista. O resultado é monumental.
PS: Se você também curte Millôr, fique de olho na Headline amanhã (sábado): sai uma entrevista minha com o escritor, editor e professor Paulo Roberto Pires, biógrafo de Millôr e um dos curadores da obra do artista no IMS.
Giro de newsletters
🎧 Sete bons sons de 2023 pela ligadíssima Babee na Boombop.
📜 Mantendo viva a discussão sobre essa coisa (maravilhosa) da crônica, a Carol Ruhman Sandler fez uma edição aberta do seu dossiê literário mensal. Vale cada linha.
🏺 A sempre genial Paula Carvalho escreveu na Paulatinamente sobre as muitas vidas mitológicas de Medeia.
🏛️ Um guia para a Jornada do Patrimonio de São Paulo que acontece essa semana, na Alguma Coisa Acontece.
🔕 Para Lee Tilghman, abandonar as redes sociais não é a solução. Ótima leitura (em inglês) na Mixed Feelings.
Para quem chegou até aqui
O disco novo da Pj Harvey. Ao contrário do que tenho feito nas últimas semanas, não vou tecer comentários — a real é que voltei a ter crises de ansiedade e quase tudo que ouvi essa semana são aquelas playlists de white noise genérico-relaxante. Mas um disco novo da PJ é um disco novo da PJ. Então, ouça:
Bom fim de semana :)
25 of Dorothy Parker's best quotes (Mental Floss)
Gaía, achei a edição linda demais. E obrigada pela indicação, fiquei felizona aqui 😊
que belo texto, Gaía. por aqui, forte partidário de reintegrarmos o sonho aos nossos dias. falar sobre, escrever sobre, pensar sobre, análises mais criativas do que “o que significa sonhar com x, Google pesquisar”.
se curtir o tema, o Lucas e eu nos dedicamos a ele num episódio 🤓
https://open.spotify.com/episode/6ojK9FmTvL7DcSyStMoCSa?si=f5ffe5bf4dac4c6a