🇵🇸 Zeladoria de junho: 11 livros para entender a Palestina
Obras que narram a violência, o apagamento, o cotidiano e a resistência de um povo.
Oi,
Essa é a edição de julho da Zeladoria, o envio mensal da Tá Todo Mundo Tentando.
Nem sempre a literatura dá conta do presente. Há tragédias que parecem escapar das palavras, que avançam mais rápido do que qualquer narrativa consegue acompanhar. Mas quando o presente é uma repetição exaustiva do passado, os livros se tornam ferramenta crucial de memória, denúncia e sobrevivência.
A edição de hoje é feita da colaboração de dois colegas que admiro muito: a historiadora
, autora da newsletter e do livro “Direito à Vagabundagem: as Viagens de Isabelle Eberhardt”, e o crítico literário , autor de “A Biblioteca no Fim do Túnel” criador da plataforma Página Cinco, que inclui newsletter, blog e podcast.Eles indicam 11 livros que tentam dar conta, através da literatura, da tragédia palestina. A seleção traz obras que narram a violência, o apagamento, o cotidiano e também a resistência de um povo que segue existindo de várias formas - inclusive através da palavra.
São títulos recentes e clássicos, ficção, ensaio, prosa poética e diário de guerra. São também pontos de partida para quem quer entender o que está acontecendo agora, mas sabe que não começou ontem.
Quatro indicações de
📕Tornar-se Palestina (Lina Meruane, tradução de Mariana Sanchez)
Há um pouco mais de dez anos, a escritora chilena Lina Meruane publicou esse livro que, infelizmente, segue atual diante do genocídio palestino. Misturando ensaio, relato de viagem e reflexão sobre a linguagem, “Tornar-se Palestina” se tornou um sucesso no Brasil, desde que foi lançado em 2019, vendendo por volta de 15 mil exemplares. Composto pelos ensaios, “Palestina em pedaços” e “Tornar-nos outros”, acompanhamos a descoberta de Meruane de sua identidade palestina em uma viagem à terra natal do seu pai; em seguida, por meio de várias leituras, ela se debruça sobre os perigos de certos usos da linguagem ao tratar de disputas e conflitos. Recentemente, a obra ganhou uma nova edição com prefácio luxuoso de Milton Hatoum e um terceiro ensaio que mergulha ainda mais na questão da identidade, “Rostos de meu rosto”. Com linguagem ágil, objetiva e empática, o livro é uma ótima pedida para quem ainda não entende muito do assunto e quer aprender um pouco mais sobre a Palestina, mas ainda não tem coragem de enfrentar livros um pouco mais densos.
📕Palestina: um século de guerra e resistência (1917-2017) (Rashid Khalidi tradução de Rogerio W. Galindo)
Esse título é para aqueles que querem se debruçar nos detalhes e com profundidade sobre a história recente da Palestina. Como é uma história marcada por conflitos bélicos, é um livro dividido a partir das guerras nas quais os palestinos viram-se envolvidos. Quem acha que a “guerra” com Israel começou em 7 de outubro de 2023, como grande parte da imprensa mundial vem afirmando, verá que essa disputa remonta a fins do século XIX, mesmo antes da Nakba, a “catástrofe”, marcada pela criação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, na qual 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas para se tornar a maior população refugiada do mundo. O historiador palestino Rashid Khalidi mistura sua biografia pessoal e da sua família com a dos conflitos que não envolviam apenas Israel, mas várias das potências europeias, os Estados Unidos e muitos países árabes. Valendo-se de acesso a documentos oficiais, história oral e outros textos, Khalidi faz um retrato desalentado, mas sóbrio de um dos conflitos mais complexos da atualidade.
📕Da presença da ausência (Mahmud Darwish, tradução de Marco Calil)
Mahmud Darwish (1941-2008) não poderia ficar de fora das recomendações. Autor do hino nacional e da Constituição palestina, é considerado o grande poeta desse povo, lotando estádios para ouvi-lo recitar poemas. Publicado dois anos da sua morte e sabendo que ela estava próxima, ele escreveu um texto híbrido entre a poesia e a prosa quando pensava que este seria seu último livro. A obra, dividida em vinte seções, contém uma espécie síntese de sua vida, sua trajetória pessoal assim como a da Palestina, o exílio forçado, ressentimentos, esperanças, amores, viagens e, claro, seu sonho de ver uma Palestina livre.
📕 Meu nome é Adam (Elias Khoury, tradução de Safa Jubran)
Apesar de ser libanês, Elias Khoury (1948-2024) é um autor que tomou para si a causa palestina na sua literatura e na sua vida, autor de “Yalo” e “Porta do Sol”, que já tratavam da questão da Palestina. “Meu nome é Adam” é o primeiro título da trilogia Crianças do Gueto, que aborda um dos capítulos menos falados da relação Israel-Palestina: a criação de guetos onde ficaram confinados palestinos à medida que soldados israelenses iam conquistando territórios. Com uma narrativa intrincada, densa e complexa, o livro mostra como um escritor e professor chamado Elias baseado nos Estados Unidos conhece Adam, um rapaz palestino nascido em um desses guetos. Com isso, Elias tem acesso à história de vida escrita pelo próprio Adam, na qual também revela como se fazia passar por israelense e sua complicada relação com essa identidade.
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Indicações de
📕Homens ao Sol (Ghassan Kanafani, tradução de Safa Jubran)
Ponto fundamental para começar qualquer conversa: nada começou em 7 de outubro de 2023, quem diz isso é desinformado ou cínico.
A literatura palestina feita a partir da metade do século XX é profundamente marcada pela Nakba, quando, durante a criação do estado de Israel, centenas de milhares de palestinos foram mortos ou expulsos de suas casas.
Essa catástrofe de 1948 que está no cerne da literatura de Ghassan Kanafani, um dos principais autores da história recente da palestina. Em “Homens ao Sol” (Tabla, tradução de Safa Jubran), o leitor acompanha três homens que procuram por uma nova vida longe da terra ocupada. A ideia é chegar no Kwait, mas a travessia será ainda mais árdua do que podem supor. Um livro angustiante e desolador.
📕Detalhe Menor (Adania Shibli, tradução de Safa Jubran)
“Detalhe Menor”, de Adania Shibli, é dividido em duas partes. A primeira é baseada num caso real: em 1949, uma garota árabe é presa e barbarizada pelo exército de Israel. Na segunda, décadas depois, uma mulher que vive na Cisjordânia decide investigar os abusos sofridos e a morte da menina. A busca pelo controle da memória e construção das versões oficiais da história, por um lado, e a representação do apartheid vivido por palestinos nos territórios que pertencem ou estão ocupados por Israel são aspectos a se destacar nesse breve romance.
Importante lembrar: em 2023, Adania receberia um prêmio e participaria da Feira do Livro de Frankfurt. Por conta de sua origem palestina, a organização do evento achou de bom-tom desconvidá-la e ignorar a premiação.
Em recente entrevista para o ótimo caderno Pensar, do Estado de Minas, o poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun disse que, para os alemães, "se você diz ‘sou palestino’, isso já é considerado antissemita. Para eles, você deveria dizer ‘sou apátrida’”, tamanho o medo de melindrar Israel. Pois é…
📕Quero Estar Acordado Quando Morrer (Atef Abu Saif, tradução de Gisele Eberspächer)
Tenho também uma indicação para entrar de vez na atual fase do massacre que os palestinos vêm sofrendo há décadas e mais décadas. Disse que nada começou em outubro de 2023, mas ali temos um ponto de inflexão nessa história que deveria fazer toda a humanidade se envergonhar. "Quero Estar Acordado Quando Morrer" é o diário do autor ao longo dos primeiros 85 dias da carnificina que já dura mais de um ano e meio.
Aos poucos, vemos a transformação do cotidiano. Conforme o número de amigos e familiares assassinados só aumenta, a vida, enquanto resiste, passa a ser regida pela busca por comida, água e abrigo. Na rua, um pedaço de cérebro cercado por gotas de sangue no chão impressiona. Com o avançar das semanas, entretanto, tornam-se mais frequentes cenas dantescas, como uma estrada ladeada por corpos apodrecendo, cabeças degoladas, pedaços de gente.
E o horror prossegue. Com mais de 60 mil mortos – estimativas falam em números impressionantemente maiores do que esse -, a cada dia sabemos de novos episódios de gente sendo morta enquanto busca por comida e famílias inteiras sendo explodidas, assassinadas, dizimadas. Casas, escolas, hospitais, bibliotecas, centros culturais, praças, teatros, lugares religiosos, bairros, cidades inteiras… Tudo foi pulverizado em Gaza.
Deixo dois trechos escritos por Atef.
O primeiro ilustra o horror:
"Os mais jovens inventaram uma maneira nova e inteligente de garantir que suas histórias sejam contadas, ou ao menos lembradas, mesmo se forem estraçalhados por um míssil israelense. Para garantir que seus corpos serão reconhecidos, eles começaram a escrever o próprio nome, com canetinha, nos braços e pernas. Estão compartilhando essa prática nas redes sociais. Alguns escrevem até o número de telefone dos familiares para poderem ser informados da morte."
O segundo, a desolação:
"Por toda a Faixa, as pessoas se sentem traídas e abandonadas. Ninguém parece se importar com a gente. Ninguém veio nos resgatar, ninguém ofereceu apoio. Israel está aplicando todas as táticas militares e cometendo sucessivas atrocidades sem objeção de ninguém. Fomos abandonados e temos de encarar e aceitar nosso destino, sem podermos opinar. Temos de sofrer em silêncio. Não importa o que sentimos ou pensamos, ninguém nos ouve. O abandono é a nossa condição."
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Posso deixar minha humilde contribuição? Este livro chegou a ser traduzido para o português uns anos atrás pela LeYa (eu fiz a preparação da tradução na época), mas acabou não sendo publicado: "Kingdom of Olives and Ash: Writers Confront the Occupation". É uma coletânea de ensaios de escritores renomados sobre a ocupação da Palestina. Uma leitura pesada e dolorosa, como qualquer uma que encare esse tema.
Bela lista!!! Li o "Quero estar acordado quando morrer" no início do ano e foi devastador...