Zeladoria: especial David Lynch
O que ver e no que prestar atenção na obra do mestre do estranho.
Oi,
Essa é a edição de setembro da Zeladoria, o envio mensal da Tá Todo Mundo Tentando com sugestões de coisas legais para ler, ver, ouvir. Essa é uma edição especial sobre o David Lynch, meu cineasta favorito.
Desde a morte de Lynch, aos 78 anos, em janeiro passado, seu nome tem estado bastante presente na mídia, seja em merecidas homenagens, seja em mostras de seus filmes.
Além do anúncio da venda de sua casa/estúdio/atelier em Los Angeles, acaba de sair “His Work, His World”, do jornalista Tom Huddleston que, entre outras coisas, já escreveu sobre os universos de Duna e dos livros de George R.R. Martin. A publicação, lançada na semana passada pela editora britânica Quarton, promete um “mergulho visual profundo na vida e no trabalho do maior criador cult do cinema e da TV.”
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Como uma sombra surreal e cheia de estilo pairando sobre cinquenta anos do cinema moderno, David Lynch criou uma filmografia que se equilibra entre o sublime e o abjeto, a ingenuidade e o cruel. Desde Eraserhead, seu primeiro grande projeto, em 1977, fascinou e confundiu plateias e críticos com a rara habilidade de revelar as ilusões que sustentam nossos sonhos, sem fugir do horror as habita.
Como acontece com alguns criadores especialmente originais, seu nome se tornou adjetivo: “Lynchiano” passou a ser usado para descrever uma sensação de incômodo, o estranho que se reconhece, o sedutor grotesco. Capaz de rir dos absurdos mais absurdos antes de levar para o fundo de um poço escuro, Lynch criou um espelho da América onde a ilusão de prosperidade, família e sucesso, quando desfeita, revela perversão, violência e solidão. Seus filmes, mais a série de TV Twin Peaks, funcionam como uma arqueologia do inconsciente, olhando de frente para os desejos por amor, fama e pertencimento, e como eles podem ser destrutivos.
Lynch criou uma gramática própria do cinema, onde horror e inocência caminham lado a lado, separados por uma cortina vermelha.
🎞️O início: Eraserhead (1977)
O primeiro longa de David Lynch escapa de qualquer definição. Foram cinco anos de filmagem intermitente, com pausas para que o diretor e sua equipe formada principalmente por amigos e colegas com gostos similares, juntassem dinheiro e conseguissem continuar. O resultado é um filme-experiência em preto e branco, sonorizado por ruídos industriais.
Sob qualquer aspecto, Eraserhead é desafiador: não há trama linear, não há explicações, não há conforto. O protagonista Henry Spencer (Jack Nance, que continuaria a trabalhar com Lynch anos depois em Twin Peaks) vive um cotidiano opressivo e uma paternidade monstruosa: o bebê deformado que ele depende de seus cuidados é uma das imagens mais perturbadoras da história do cinema. Por trás do choque visual, há camadas interpretativas — há quem veja o filme como uma alegoria do medo da paternidade, já que Lynch tinha acabado de se tornar pai, e o terror de cuidar de uma vida frágil pode ter se transmutado nesse retrato grotesco. Outros apontam para uma parábola sobre isolamento urbano, impotência masculina ou até mesmo ansiedade existencial pura e simples. Lynch, fiel ao seu método, nunca confirmou nenhuma leitura.
Adiantando outros elementos importantes da obra do cineasta, Eraserhead tem design de som, feito pelo próprio Lynch, substituindo a música tradicional por um fundo contínuo de chiados, batidas metálicas e silêncios incômodos.
O impacto foi imediato no circuito underground. Lançado em exibições de meia-noite em Los Angeles e Nova York, Eraserhead se tornou objeto de culto antes mesmo de ser distribuído em larga escala. Stanley Kubrick o declarou um de seus filmes favoritos, e recomendava que sua equipe o assistisse durante a preparação de O Iluminado.
É impossível considerar a trajetória de Lynch sem esse começo radical: Eraserhead apresentou seu estilo, seu método e seus temas: filmar o inominável e dar forma visual ao que normalmente é enterrado no inconsciente.
🎞️O clássico: Blue Velvet (1986)
O sucesso de crítica de O Homem Elefante colocou Lynch sob as graças de Hollywood, e com Blue Velvet ele consolidou o adjetivo “lynchiano”, estabelecendo o contraste que se tornaria sua marca: a superfície luminosa da vida americana escondendo horrores subterrâneos. Conduzida por outro diretor, a trama poderia dar um thriller banal: os jovens Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan, que viria a se tornar alter ego de Lynch em várias obras) e sua namorada Sandy (Laura Dern, que também seria uma das maiores colaboradoras da carreira de Lynch) decidem investigar por conta própria acontecimentos estranhos da pequena cidade onde vivem. No centro do que será um labirinto de violência, desejo e perversão, está Dorothy Vallens (Isabella Rossellini, então musa do cineasta), uma cantora de bar atormentada por um relacionamento abusivo com o gângster Frank Booth (Dennis Hopper, em uma das atuações mais assustadoras já registradas em cinema). A colaboração entre Lynch e Rossellini é central aqui. Ela entrega uma performance devastadora de fragilidade e coragem, mergulhando sem filtro em cenas de humilhação e violência que chocaram as plateias da época e até hoje causam desconforto. Foi ela quem deu carne e voz ao lado mais sombrio da visão de Lynch. Kyle MacLachlan, por sua vez, encarna a curiosidade juvenil misturada com ingenuidade que faz o espectador entrar nesse mundo oculto junto com ele. A química entre os dois cria a fricção entre o ordinário e o bizarro que move o filme.
A recepção de Blue Velvet foi explosiva. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor, ganhou o Independent Spirit Awards em várias categorias e rendeu a Dennis Hopper uma consagração tardia como um vilão icônico. Ao mesmo tempo, causou polêmica: algumas críticas o acusaram de exploração, de sadismo gratuito, de misturar erotismo e violência de forma incômoda. Mas foi justamente essa capacidade de incomodar que fez a obra atravessar décadas. A transgressão virou referência e diretores como Pedro Almodóvar, Todd Haynes e Quentin Tarantino assumiram influência direta de Blue Velvet.
🎞️O cult: Coração Selvagem (1990)
O cult dos cults entre a filmografia de Lynch, ganhou a Palma de Ouro em Cannes mas dividiu crítica e o júri (o crítico Roger Ebbert vaiou), numa recepção que o carimbou como um filme para apaixonados e detratores.
A história acompanha Sailor (Nicolas Cage, perfeito em sua jaqueta de cobra como segunda pele) e Lula (Laura Dern) um casal num road movie sexy e violento capaz de fazer corar o Oliver Stone de Assassinos por Natureza. O filme é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma celebração da tradição audiovisual estadunidense, misturando Elvis Presley, O Mágico de Oz, sexo, sangue e humor grotesco. Com uma trilha sonora que vai de Chris Isaak a speed metal, e um estilo visual que oscila entre o kitsch e o poético, Coração Selvagem permanece um filme amado por uma geração que descobriu Lynch no VHS e levou a jaqueta de cobra pra vida.
🎞️O incompreendido: A Estrada Perdida (1997)
Quase trinta anos após o lançamento, essa homenagem fragmentada ao cinema noir ainda é um enigma, escapando de definições e análises. Aqui estão as narrativas de dualidade que Lynch amarraria tão bem mais tarde, além de elementos como o uso da música, as longas sequências em estradas, a violência contra o corpo feminino.
A narrativa começa com Fred Madison (Bill Pullman), um músico de jazz atormentado por ciúmes da esposa, Renée (Patricia Arquette). Depois de uma série de eventos estranhos, como (mas não só!) gravações em VHS que aparecem misteriosamente na porta de casa, e uma presença fantasmagórica interpretada por Robert Blake, o filme sofre uma ruptura radical: Fred desaparece da prisão onde estava e, em seu lugar, surge um jovem mecânico, Pete Dayton (Balthazar Getty). A trama se reorganiza em torno desse novo personagem, mantendo conectados os fios da história, como se a realidade tivesse se dobrado sobre si mesma. Esse movimento narrativo ecoa o tema central: vidas duplas. É uma exploração da possibilidade de viver duas realidades paralelas, sem fugir de quem se é. Patricia Arquette, que interpreta tanto a esposa Renée quanto a enigmática Alice, encarna com força esse jogo de espelhos — e é uma das mais lindas presenças em tela na obra de Lynch. O elenco, aliás, é marcante justamente por não trazer as colaborações recorrentes de Lynch. Quase todos os atores trabalharam com ele apenas nesse filme, o que dá uma estranheza suplementar, já que o espectador não encontra os rostos “familiares” que se tornaram ícones em outras obras do diretor.
A trilha sonora, organizada por Trent Reznor, é outro elemento fundamental: Mistura David Bowie, Marilyn Manson, Rammstein, Lou Reed e Angelo Badalamenti em um mosaico sonoro que reflete a fragmentação da narrativa.
Há quem o considere ininteligível, pretensioso e frustrante (e é mesmo) e quem admire a ousadia rara e o apuro estético (também é verdade). O importante é que essa é uma investigação formal que antecipa os jogos narrativos de Mulholland Drive e Inland Empire - juntos, os filmes formam uma trilogia de obras sobre a exploração de identidades fragmentadas.
🎞️O surpreendente: Uma História Real (1999)
Não tem violência surreal, monstros escondidos atrás de cortinas vermelhas, nem narrativas espelhadas. Mas é tão lynchiano quanto qualquer outro, justamente por mostrar o quanto de extraordinário pode estar disfarçado na simplicidade.
Baseado em uma história real, o filme acompanha Alvin Straight (interpretado por Richard Farnsworth, em performance indicada ao Oscar). Aos 73 anos, ele decide atravessar as planices de Iowa e Wisconsin para visitar o irmão doente e tentar uma reconciliação, fazendo a jornada em um cortador de grama, avançando a poucos quilômetros por hora.
Lynch filma a viagem com uma enorme delicadeza. A câmera observa as paisagens abertas e o ritmo lento das pequenas cidades do interior, registrando encontros com pessoas comuns. O que poderia ser uma anedota vira uma meditação sobre tempo, memória, arrependimento e afeto. Cada parada de Alvin é uma pequena epifania: conversas sobre guerra, juventude, família e a passagem dos anos.
A crítica, surpresa com essa guinada, recebeu o filme de braços abertos. Foi exibido em Cannes, indicado à Palma de Ouro, e celebrado por mostrar que Lynch sabia manejar a ternura e a simplicidade de uma boa história com a mesma força com que criava pesadelos complexos. O diretor não se contradiz aqui: apenas revela outra face do mesmo mundo — e não é a complexidade da experiência humana o tema mais central da obra de Lynch?
🎞️A obra-prima: Mullholland Drive (2001)
O filme derradeiro (descontando Twin Peaks: The Return, que foi feito para TV como um filme de 18 horas de duração) e o que melhor traduz o universo lynchiano.
Como projeto, foi inicialmente pensado como piloto de uma série de TV para a rede ABC. Lynch imaginava estender sua exploração do mistério, do duplo e da identidade ao longo de vários episódios. Mas a emissora rejeitou o piloto, considerando-o “incompreensível”. Oh, well. Em vez de abandonar a ideia, Lynch remontou, reescreveu e filmou novas cenas, transformando o material em seu longa-metragem mais festejado pelo público e pela crítica.
A trama começa simples: uma aspirante a atriz (Naomi Watts, em performance histórica) chega a Los Angeles inocente e cheia de sonhos. Lá encontra uma mulher misteriosa (Laura Harring) que perdeu a memória após um acidente de carro. As duas se aproximam, entre paixão e investigação. Mas, fortalecendo os contornos oníricos do filme, a narrativa começa a se deformar: personagens mudam de rosto, cenários ganham novos sentidos, e a plateia se vê arrastada para um teatro onde nada é confiável — nem mesmo a linearidade da história.
Essa construção faz de Mulholland Drive um filme sobre o próprio cinema: o poder de criar ilusões, o perigo de acreditar nelas, e o trauma de acordar. Naomi Watts, em especial, entrega duas atuações dentro da mesma obra — uma jovem sonhadora e uma mulher em ruína — que a consagraram como uma das grandes atrizes da sua geração.
A recepção crítica foi arrebatadora. O filme ganhou o prêmio de Melhor Direção em Cannes e, duas décadas depois, entrou para a história com um lugar privilegiado no cânone: em 2020, o New York Times organizou uma lista dos 25 melhores filmes do século XXI até então. Mulholland Drive ficou em segundo lugar, atrás de Parasita (Bong Joon Ho, 2019) e à frente de Sangue Negro (Paul Thomas Anderson, 2007).
É o filme que consolidou David Lynch como o cineasta que mais conseguiu retratar o inconsciente coletivo do século, cinema em sua forma mais sofisticada, perturbadora e inesquecível.
Extra: Assistindo Twin Peaks
Em julho, passei uma manhã de sábado falando loucamente sobre um dos meus assuntos preferido com o Danilo, do podcast Assistindo Twin Peaks. Foram quase duas horas de papo sobre as diferenças entre a primeira e a segunda temporada, plots que não vingaram, sequências e personagens favoritas e por quê a Sheryl Lee não é considerada uma das maiores atrizes do cinema americano ever.
Ouça abaixo, mas vá com cuidado: contém (muitos!) spoilers.
🪬Obrigada por ler até aqui!
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Lendo ao som de NIN, percebo que ainda não vi Lost Highway. Vou anotar pra pagar essa dívida em breve! Beijo