Para ouvir lendo: "Nothing to Find" do War on Drugs — que fim levou o War on Drugs? Saudades, War on Drugs! (Youtube/Tidal)
Pelo menos tá fácil de limpar — rosnou pra si mesmo, deixando a água cair, tomando cuidado pra sujeira não entrar nos olhos, no nariz, nos ouvidos. Lavou bem a cabeça, esfregando o dedo atrás da orelha até não sentir nenhuma área áspera. Foi uma surpresa desagradável, mas não de todo inesperada. Em algum lugar do peito ele lembrava da ameaça — olha que eu espalho glitter na sua casa! E vou fazer de um jeito que você nunca vai esquecer ou conseguir limpar! Ela falava e ria, como se não fosse nada. Mas ele levava a sério, menino assustado, e pedia por favor, não faz isso, tô falando sério, não faz isso. É só você me tratar direito, ela provocava. Eu vou, ele mentia.
Abriu os olhos. Onde normalmente veria a espuma do xampu, descendo da barriga redonda até a unha cascuda do dedão do pé direito, via uma cachoeira de glitter prateado caindo sobre o piso do box, já entupindo o ralo e formando uma poça de água cintilante pontuada por espuma de sabonete e restos de cabelo. Do pote plástico de xampu dois-em-um largado no chão, com condicionador e cheiro de menta, agora escorria um fio grosso, artificial e brilhante. Desligou a água e se enrolou na toalha, tentando ignorar que ficaria suja de purpurina, e se resignou a limpar como dava. O processo todo levou pelo menos umas duas horas. Toalha, xampu e panos: tudo lixo.
Estava no processo de passar um pente fino no banheiro quando lembrou que mais fácil era avisar o seu Vicente, da portaria, que ninguém mais estava autorizado a subir sem interfonar, e que se ele não estivesse em casa, era pra não deixar entrar. Tomou duas pílulas para dormir, trocou toda a roupa de cama, amassou os travesseiros com a mão em cima do tanque na área de serviço, para se certificar de que estava seguro, e dormiu tranquilo.
Ele, um cara que há muitos anos tinha desistido de tentar se divertir no carnaval, não conhecia bem o tal do glitter. Ainda mais esse glitter novo, bem fininho, quase invisível, que dizem que dura para sempre e que reaparece de vez em quando, dependendo da luz, das fases da Lua, das cartas do tarô e da tábua das marés. Na manhã seguinte, se espantou ao ver que o celular, que ele tinha deixado cuidadosamente afastado durante todo o processo de limpeza do banheiro, trazia na tela um brilho sinistro, uma textura de areia da praia, uma profecia a cumprir.
Ele foi correndo até a mesa da sala para pegar o kit de limpar telas que ficava na gaveta, mas parou assim que pegou no puxador. Pensou que talvez estivesse ali alguma outra armadilha esperando para ser desarmada, e que se fosse cuidadoso, podia ser mais esperto. Podia adiantar as atitudes dela. Teve arrepios pensando em lápis, cadernos, pacotes de camisinhas, polaroides de ex-namoradas e objetos miúdos cobertos pela desagradável purpurina, mas fez força e abriu a gaveta devagar. Colocou um dedo, depois o outro, tocando e sentindo a superfície dura, lisa, limpa. Abriu mais um pouco, colocou a luz do celular: lá dentro nada brilhava. Seguro.
Decidiu passar na padaria da esquina antes de ir trabalhar e, quando desceu ao térreo, seu Vicente jurou de pés juntos que não tinha visto ninguém subir pro apartamento, não tinha escutado nada estranho, e que, sim, lembrava da mulher, tá tudo bem?, prometeu que ia anotar no caderninho e avisar toda a equipe: ninguém subiria.
A confusão de quando-onde-como piorou quando apareceu uma segunda bomba, no começo da noite seguinte: um vidro inteiro de maionese KewPie cheio de glitter amarelo-ovo, que ele despejou por cima do prato de comida que tinha acabado de preparar e arrumar com cuidado e fotografar com vaidade para comer numa bandeja com pezinhos, vendo filme na cama, sobre o lençol limpo, antes de dormir. Gritou de ódio e nem tentou limpar, jogando a mancha redonda e brilhante junto com prato, comida, pote, bandeja e lençol em mais um saco. Tudo lixo.
Um pensamento subiu gelado nas costas: teria mais? Com certeza ela não tinha parado ali. A coisa da maionese tinha sido bem pensada: era um tubo que você apertava com força em cima das coisas, potencializando a sujeira. Uma mulher inteligente virada na sanha vingativa era capaz de tudo. Até disso.
A cafeteira italiana amarela, presente dela, portanto investigada, porém sem nenhum brilho perigoso, estava apitando no fogão quando ele encontrou e desarmou a terceira bomba, essa cuidadosamente armazenada num saquinho retangular de plástico, colado meio aberto na parte de trás de um quadro. Passou o dedo pela moldura traseira e, vitória!, pensou, tá vendo, você não é tão esperta assim, eu também posso jogar esse jogo. Retirou com cuidado o invólucro aberto, diminuindo danos, e pegou o aspirador portátil para limpar o pouco de glitter dourado grudado na parede.
Quando percebeu, já era tarde: o ar soprou com tudo, espalhando uma nuvem azul e brilhante que ele viu, apavorado, bater na parede e descer sobre os vasos de planta, o taco de madeira, boa parte da estante de livros, o sofá-cama novo, a rede, o violão. Se odiou por não ter antecipado essa – era só ter testado antes, era só ter limpado com a vassoura, apontado o aspirador pro chão, olhado o botão certo. Era só ter feito diferente. Os acontecimentos todos passando em câmera lenta na cabeça. Uma única atitude diferente, um segundo de clareza e todo esse instante, horroroso e irremediável, faria parte de outra realidade.
Ele saiu num frenesi, encostando e mexendo em tudo que encontrava pela frente, numa bagunça proposital para encontrar o que quer que fosse que aquela mulher tivesse escondido na sua casa, na sua vida. Achou punhados gordos de purpurina preta guardados dentro de pelo menos sete discos de vinil, todos importados, de jazz, alguns com encartes, alguns raros. Disparou sem querer uma engenhoca feita com uma ratoeira e uma bola rígida de glitter laranja, escondida acima da estante, que explodiu ao cair no chão, alcançando todo o perímetro da sala. Achou glitter verde misturado com o sabão da máquina de lavar roupa, glitter vermelho dentro da CPU do computador, glitter rosa dentro de bolsos de casacos. Olhou em cima do armário da cozinha, onde, com o coração no chão, viu uma camada grossa, possivelmente irremovível, pronta para ser lentamente espalhada ao longo de anos a cada vez que ele abrisse a janela ao lado do fogão, temperando suas receitas futuras com glitter roxo. Achou glitter dentro das caixas de óculos, dentro de bolas de meias, dentro de sapatos, dentro de livros. A cada novo achado ele soltava um grito maior, finalmente libertando algum sentimento. Berrava com um ódio sincero, sem nenhum traço de autopiedade, deixando vir das entranhas uma raiva que o fazia ir em frente encontrando mais e mais poeira colorida no meio das coisas, suas coisas sempre tão protegidas de tudo que existia lá fora, sempre tão privadas, agora irremediavelmente sujas, tremendamente bagunçadas. E, de repente, ficou exausto. Sentado no chão, com cada poro do corpo, cada fio de cabelo, cada centímetro de superfície da casa contaminado, olhou ao redor exaurido, entregue.
Dormiu na rede, sem travesseiro ou cobertor, e acordou de manhã cedo com o sol batendo na cara. A realidade que ele não conseguia ver de noite agora se impunha: o apartamento, sempre meio escuro e morto, brilhava. Cada superfície refletia luz. Tudo tinha cor. Horrorizado pelas unidades de brilhinho pairando no ar, ele entendeu que cada canto ainda não investigado tinha potencial para outras sujeiras brilhantes denunciarem as verdades que ele odiava. Não dava para tapar o sol com a peneira ou criar labirintos de espelho: os canos de esgoto estavam abertos, e cintilavam.
Com todo cuidado, lavou o rosto e as mãos, conseguiu achar uma roupa limpa nos sacos plásticos, entregues pela lavanderia um dia antes, e colocou o mínimo essencial na mala de mão que usava às vezes, em viagens. Ia comer algo na rua e se recuperar num hotel. Inventar uma desculpa no trabalho e sumir uns dias. Ter uma consulta urgente com o psicólogo, com o psiquiatra, com a taróloga, com a mãe de santo, com quem estivesse disponível. Ia comprar roupas novas, pesquisar uma empresa de faxina pesada. E, quem sabe, mudar de cidade e abandonar tudo assim como estava: um lixo.
Não quis esperar o elevador. Desceu pelas escadas, pulando degraus. Passou rápido pela portaria, sentindo o portão bater nas costas. Entrou no primeiro táxi, jogando a mala de mão entre os pés. Na subida da Angélica, o peito apertou quando ouviu o motorista: essa mala aí vai fazer muita sujeira?
🏠 Cinco prédios icônicos de Santos
Essa lista é um oferecimento da Refúgios Urbanos, uma imobiliária feito por (e para!) amantes da arquitetura #publi
Edifício Campos Elísios: paisagem marcante da cidade
Márlio Raposo Dantas e ARENA, 1965
Praça Independência
Esse ícone santista chama a atenção pela fachada ondulada com design modernista e colorido que lembra uma colmeia e foi construído pela ARENA (Arquitetura e Engenharia Associados) com projeto de fachada colorida do arquiteto Márlio Raposo Dantas — responsável por outras obras na cidade.
Parque Verde Mar: o rei da orla!
João Artacho Jurado, 1957
Av. Vicente de Carvalho, 6 - Boqueirão
“EIS O CASTELO ENCANTADO QUE SE ERGUERÁ NA LINDA PRAIA SANTISTA DO BOQUEIRÃO”: era assim que o Edifício Parque Verde Mar era descrito nas propagandas de venda. Artacho Jurado aproveitou o boom do mercado imobiliário santista dos anos 50 construindo um prédio luxuoso que atendesse as expectativas dos paulistanos que buscavam um imóvel na praia. O edifício serviu de inspiração para detalhes presentes na orla santista ainda hoje, como marquises e bancos com as cores e os formatos curvilíneos e amebóides do edifício.
Edifício President: o queridinho da Ponta da Praia
Três Leões, 1957
Avenida Epitácio Pessoa, Ponta da Praia
O Edifício President tem localização privilegiada na esquina das avenidas Epitácio Pessoa com a Joaquim Montenegro, no Canal 6. Erroneamente ligado a Artacho Jurado, devido a utilização de cores contrastantes e a forma orgânica da fachada, o prédio é atribuído ao arquiteto santista Arnaldo Conceição de Paiva, embora sua família não reconheça oficialmente o projeto.
Edifício Holiday: uma arrojada concepção arquitetônica
ARENA, 1965
Avenida Presidente Wilson, José Menino
Um marco na paisagem da costa, o Holiday foi erguido sobre as rochas graníticas do maciço de São Vicente, no bairro José Menino. O edifício chama a atenção pela grandiosidade: são mais de 400 unidades habitacionais — todas com vista para o mar! Entregue no primeiro ano após o Golpe Militar de 1964, a publicidade no jornal local define a construção como “símbolo de luta e a vitória sobre um período conturbado da vida social e política de nosso país”.
Bolsa do Café: parte da história do Brasil
Companhia construtora de Santos, 1922
Centro Histórico de Santos
O prédio da Bolsa do Café começou a ser construído em 1920 mas só foi inaugurado em 07 de Setembro de 1922, como parte das comemorações do centenário da declaração da Independência do Brasil. Com mármore de Carrara no piso, vitrais coloridos e belíssimos painéis pintados por Benedito Calixto, suas salas estavam sempre ocupadas e cheias de gente até o final meados dos anos 1930, quando a crise mundial atingiu em cheio o Brasil. Fechado em 1937, o prédio passou a sofrer com a degradação do tempo até 1998, quando passou por uma restauração para abrigar o Museu do Café.
Conheça outros prédios icônicos de Santos nessa seleção no site da Refúgios Urbanos e também no livro "Predinhos de Santos", disponível em PDF gratuito.
📚 estou lendo
Importante: os links abaixo são para vendas dos livros em livrarias independentes, para os sites das próprias editoras e/ou dos autores. Eu não ganho nada caso uma venda seja realizada através desses links — mas as livrarias, as editoras e os autores, sim ;)
Corpos Secos - Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado
Uma doença super contagiosa, transmissível pelo ar, transforma as pessoas em zumbis. A premissa pode soar banal, parecida com qualquer filme de terror, mas nesse caso acontece no Brasil bolsonarista e tem formas bastante atuais (e apavorantes). Um romance peculiar não só por ser assinado por quatro autores, mas por ter sido escrito e lançado logo antes da pandemia começar. Os autores falam sobre o processo criativo coletivo e sobre as escolhas que a pandemia impôs nesse ótimo episódio do podcast da revista Quatro Cinco Um. 🛍️ Compre na Dois Pontos.
Não Verás País Nenhum - Ignácio de Loyola Brandão
Escrito nos anos 1980, essa eco-distopia brasileira envelheceu como poucas ficções que arriscam falar do futuro: é muito mais realista do que nós gostaríamos de imaginar. Em 2020, o autor deu essa ótima entrevista para a Marie Declerq no Uol TAB. 🛍️ Compre na Dois Pontos
Cidades Afundam Em Dias Normais - Aline Valek
No segundo romance da Aline Valek, uma cidade alagada "volta" para a terra durante uma seca e levanta questões sobre memórias, responsabilidades e relações das pessoas com aquele território. O site Valkírias fala nessa resenha sobre a relação da obra com o cerrado brasileiro. 🛍️ Compre no site da autora.
👁️ vi aqui: Force Majeure
Uma família em férias nos alpes da França é abalada por uma avalanche — mas não é um filme de tragédia e sobrevivência humana frente às forças da natureza... Ou talvez seja? Essa estranha mistura sueca de drama e comédia conquista pelos absurdos das situações e pela capacidade de nos fazer reconhecer nelas. Meu filho achou que é um filme "sobre tretas desnecessárias", eu achei que é um filme sobre tudo aquilo que fica não dito em relações afetivas desgastadas. Tem na Amazon Prime.
🗞️ vem aí: curso social media e growth hacking para o mercado editorial
Um curso específico para profissionais do mercado editorial, criado e apresentado pela Taty Leite, do canal Vá Ler Um Livro, uma das primeiras (e melhores) criadoras sobre conteúdo literário na internet brasileira. São 22 horas de aula entre agosto e setembro, com participação de especialistas de diferentes áreas, como o Renan Sukevicius falando sobre podcasts e euzinha falando sobre newsletters. Inscreva-se direto no site da LabPub.
📝 vem aí: Carola Saavedra e Salve Conteúdo
A Salvo Conteúdo, uma das mais bacanas curadorias de conteúdo do Instagram, está realizando o curso "O mundo desdobrável: literatura como ferramenta de transformação", com Carola Saavedra, autora dos romances “Toda Terça” (2007), “Flores Azuis” (2008), “Paisagem com Dromedário” (2010), '“O Inventário das Coisas Ausentes” (2014) e “Com Armas Sonolentas” (2018). O curso acontece em agosto, e quem fizer a inscrição via Sympla recebe também uma edição de “O Mundo Desdobrável: Ensaios para Depois do Fim", que Carola lançou em 2021 pela Relicário.
A própria Carola descreve a proposta: “Imaginar novos mundos é uma das tarefas mais urgentes e difíceis dos nossos tempos. A imaginação tende a repetir fórmulas há muito internalizadas. A literatura, porém, pode ser um espaço frutífero e potente para esse exercício. Não só porque muitas vezes ela diz o que ainda não sabemos, mas também porque nos oferece a possibilidade de contar o que ainda não foi contado. Nesse sentido, um olhar para outras formas do fazer literário [saberes indígenas, distopias, performances etc.] pode nos ajudar a pensar novas possibilidades para o futuro e para a própria vida.”
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O ciclo completo da produção de um livro é algo misterioso para a maioria de nós, leitores, e é o assunto desse curso elaborado pelo Daniel Lameira, uma das pessoas à frente da Antofágica, editora que vive aparecendo aqui na TTMT. Pensado ao longo de dois anos, o curso é resultado da trajetória de Lameira dentro do mercado editorial e conta com 24 participações de representantes das diferentes partes do processo de produção de um livro. Começa em setembro. Vai lá:
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