Tá Todo Mundo Tentando: viajar sozinha
Até quando vamos tratar a autonomia das mulheres como algo que requer justificativa?
Oi,
Amanhã e depois (sábado e domingo) tem a terceira edição do Texto & o Tempo, um evento online para quem faz e pensa newsletters.
A iniciativa é de produtoras e produtores de newsletters autorais no Substack, com convidadas e convidados de áreas diversas conversando sobre boas práticas, temas e demais meandros do mundinho newsletter.
Eu participo da primeira mesa, com Paula Carvalho da Paulatinamente, Gabriele Duarte da Silva da Bom Proveito e Rebecca Aletheia da Bitonga Travel, falando sobre newsletters de viagem.
Programação e inscrições nesse post.
A edição de hoje é sobre a morte da Juliana Marins, e sobre viajar solo. Antes de seguir, deixo alguns textos já publicados sobre o assunto:
Boa leitura e até semana que vem,
g.
Viajar sozinha, quase dez anos depois
Em 2016, quando lancei o “Mas Você Vai Sozinha?”, a pergunta que mais aparecia nas entrevistas que dei era: “mas por que uma mulher tem que viajar sozinha?”.
Vinha com essa ênfase no tem que, como se viajar sem companhia fosse um rito obrigatório de emancipação, uma prova de força, autonomia, coragem. Como se o simples ato de sair sozinha pelo mundo transformasse qualquer mulher numa espécie de heroína do autoconhecimento, da segurança.
A resposta que eu dava então continua valendo: mulher nenhuma tem que fazer nada para provar coisa alguma. Viajar sozinha é maravilhoso, mas a questão é outra. Mulheres de todas as idades e condições ainda deixam de fazer coisas na própria companhia porque o esperado estejam sempre acompanhadas. A falsa sensação de segurança, ou o medo real de julgamento, da violência e do abandono, impede muita gente de realizar um desejo simples: o de ir.
A morte da Juliana Marins, no Monte Rinjani, na Indonésia, trouxe esse assunto de volta ao noticiário. Juliana não estava sozinha. Ela fazia parte de um grupo de trilha, numa rota turística bastante conhecida, havia contratado uma empresa local, pagou pelo serviço, seguiu os protocolos básicos de segurança. E foi abandonada no local após um acidente.
O guia do grupo teria abandonado no local turista homem estadunidense ou europeu? Vale a pergunta.
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Em 2016, o pano de fundo era outro caso trágico: o assassinato de duas turistas argentinas em um balneário do Equador. Na época, o julgamento vinha parecido: “mas elas estavam sozinhas!” Como se a responsabilidade pelo que aconteceu recaísse sobre o desejo de liberdade, e não sobre a negligência, a violência, a estrutura que naturaliza o controle do corpo feminino.
A pergunta se repete porque seguimos tratando a autonomia das mulheres como algo que precisa de justificativa. A liberdade feminina, uma liberdade que não é negada a outros corpos, é vista como uma provocação.
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Entre 2014 e 2019, fui repórter de viagem. Era um trabalho ótimo: escrever, andar por aí, falar com pessoas, olhar o mundo de perto. Nesse tempo, viajei sozinha para lugares como Escócia, Guatemala e Índia. Com planejamento, cuidado, informação e sempre com o apoio de outras mulheres, que encontrei pelo caminho.
Não foram poucas as situações que deram medo. Algumas vezes, justificado. Outras, por condicionamento - o medo que nos ensinam a carregar como precaução. Mas se existe um dado que precisa ser repetido sempre, é este: o lugar mais perigoso para uma mulher continua sendo a própria casa. É lá onde acontece a maioria das violências físicas, psicológicas, morais e sexuais. É ali, no espaço que deveria ser o da segurança, que mulheres morrem todos os dias pelas mãos de pessoas próximas.
Então não, não é irresponsável querer sair. Não é inconsequente querer ir sozinha. O que é inconsequente é seguir normalizando que o mundo público não nos pertence. Que os riscos de estar no mundo (que existem, claro!) são razões suficientes para que a gente aceite uma existência limitada ao espaço doméstico, ou à presença de um acompanhante autorizado.
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Viajar sozinha não é um atestado de autoestima, nem uma obrigação feminista. É uma possibilidade. Uma escolha. E, como toda escolha, envolve riscos, assim como envolve alegrias, descobertas, aprendizados. Tem a ver com gostar da própria companhia, com a chance de andar no próprio ritmo, de não ter que negociar o tempo todo, de ter silêncio ao redor e dentro.
Mas também tem a ver com o direito de estar no mundo. Com o direito de olhar, atravessar, experimentar. Com o direito de não ser constantemente vigiada, explicada, protegida, ou acusada.
O que aconteceu com a Juliana foi uma negligência grave, e alguém precisa ser responsabilizado. Mas o que não pode acontecer de novo é que mulheres, diante do medo, parem de ir. Porque o mundo não foi feito só para os outros. Porque ninguém devia precisar pedir permissão para ir conhecer o que há além do portão.
💌 Newsletter da semana: Élvio Cotrim
A prosa certeira do
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Bom fim-de-semana!
Como sempre, para falar comigo é só me responder esse email ou deixar um comentário:
ai Gaía. tô tão cansada disso.
às vezes perco a vontade de me comunicar com as pessoas por causa desse tipo de coisa. eu não quero ter que apontar mais o absurdo, sabe.
prefiro pegar a mala e ir embora (sozinha)
Impingiram à Juliana a sentença do “ah, mas ela estava sozinha”. Por isso temos sim que falar, falar, falar. Só vocalizando para ver se entendem o mínimo. Mulher pode o que quiser!! Valeu!!😊