Tá Todo Mundo Tentando
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Tá todo mundo tentando: simbiose
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Tá todo mundo tentando: simbiose

E mais: dicas de apês em SP, nova edição do ABC da Newsletter e o que eu achei de Sandman
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Para ler ouvindo: "10:15, Saturday Night", The Cure do comecinho, melhor The Cure (Youtube/Tidal)

O apartamento era pequeno e escuro, não mais que um corredor, mas ela só viu quando empurrou a porta, forçando a entrada. A avó sempre dizia que porta fechada é sinal pra não entrar, mas ela fez que não importava e empurrou o peso contra a madeira, abrindo primeiro uma fresta e aos poucos uma passagem apertada. Do outro lado, o escuro escondia uma pequena trilha, apertada entre a floresta crescida dos vasos de planta abandonados que ninguém lembrou de podar e que tinham tomado conta das paredes, do que havia sido mobília e objetos, do teto, das janelas, das frestas do chão de taco. Flor nenhuma, sol só de relance, água muita, terra também. Suficiente para sustentar uma massa de folhas, galhos retorcidos e trepadeiras crescendo sem controle. Existem folhagens que são capazes de crescer com quase nada, e uma hora a própria mistura de folhas mortas serve de alimento. Existem plantas capazes de abrir buracos nas folhas para deixar o sol passar para as outras que se alimentam da luz, quando ela vem. Existem plantas que crescem rígidas pra cima, como espadas. E plantas que se espalham, macias, na horizontal, fazendo como que mantas no chão. Todas buscam a mesma coisa: espaço. Ela não precisava entender de vida vegetal para achar um caminho, saber detalhes sobre como elas cresciam ou do que precisavam. Podia ignorar a biologia do solo e a rotina de luz porque sabia que, na marra, era possível abrir passagem e ir avançando, um passo de cada vez. Fechou a porta atrás de si, ignorando instintos e fazendo pouco caso de conselhos. Pisou os dois pés ao mesmo tempo, depois um de cada vez, seguindo a trilha por dentro do apartamento abafado, escuro e triste, num prédio feio, numa parte da cidade que já tinha morrido. Não tentou explicar — algumas decisões não tem motivo, a vida vem. A trilha seguia sempre cheia de curvas, às vezes a obrigando a andar abaixada, sempre impedindo a visão do que havia à frente, sempre escondendo o que havia dos lados, e depois de alguns passos também já não era possível enxergar com clareza o que tinha ficado para trás. Ela desviava de galhos e espinhos, encaixando o corpo como dava no espaço que aparecia, pegando de relance partes pequenas do céu. Às vezes precisava engatinhar, ralando as palmas das mãos e os joelhos na terra do chão, escura e malcheirosa, misturada a pedaços de tecido, chorume, restos de embalagens plásticas propositalmente esquecidas em lugar visível, chumaços de cabelo, tocos de ossos, borras de café. Ignorava, porque a partir de algum momento era preciso continuar. E mesmo quando a trilha interrompeu, era preciso continuar. Se achou perdida, à deriva no escuro, numa imensidão de folhas, lama e musgo, mas era preciso continuar. Tentou subir num galho para ver se enxergava algum caminho por cima da copa das árvores. Era difícil, porque tudo tinha musgo demais, alguns galhos tinham espinhos demais, tudo escorregava ou feria, mas ela era leve e ágil e não era sua primeira vez perdida na mata. Agarrou num galho, apoiou o pé direito em outro, apoiou as costas em mais um e foi subindo sempre devagar mas sempre na direção do que podia ser ar fresco. Quando o galho não sustentou o peso, ela caiu, mas a queda também mostrou o caminho: ali na frente, só mais uns metros, tinha trilha de novo. Tinha? Parecia um caminho quentinho, confortável, estável, familiar, seguro. Ela já estava tão acostumada com a lama, o escuro e as plantas, com o verde escuro, com o sol que só aparecia às vezes, que quem sabe os ossos na lama não fossem tão ruins e quem sabe se fosse em frente, só um pouco mais em frente, não pintaria um caminho de verdade, uma viagem, uma única memória que fizesse a travessia toda valer a pena. Ela tinha feito trilhas suficientes para saber que sempre davam em algum lugar. Ou, quem sabe, ela mesma se tornaria uma planta de alguma forma, e não são todas as plantas algo bom? Mesmo as mais rasteiras, mesmo as daninhas, as venenosas, mesmo as que dependem de sugar energia de outras, mesmo as que escondem cabelos e ossos e vísceras e merda, não são elas capazes de transformar tudo em matéria para continuar vivendo apesar do escuro, apesar do inóspito, apesar do abafado? Podia não ser assim tão ruim, não se tivesse sol de novo lá na frente. Ainda que claustrofóbica, a trilha ia em frente, sem ela notar que dava voltas, que as plantas mudavam de posição e escondiam bem os passos repetidos. E parecia que estava subindo mas na verdade estava descendo, parecia que estava indo pra direita mas na verdade estava indo pra esquerda, parecia que estava indo em frente e na verdade estava voltando e parecia que ia dar sol — mas não deu. O que deu foi um barranco. Uma pedra ou um osso ou uma raiz mais grossa, algo atravessado no meio da trilha puxou seu pé e com um puxão só provocou um tombo pra frente — uma longa queda. No lugar do sol, pernas arranhadas, hematomas, alguns dentes a menos também. Um escorregão com consequências. No lugar do conforto da manta de folhas do chão escuro, um baque surdo numa terra agora seca, dura, vermelha e rachada. Um ambiente novo, árido, inóspito. Mas aberto. Nenhuma porta impede passagem ou planta em associação simbiótica de proporção desigual consumindo energia. Só o céu, o vento, o sol forte e todos os ossos inteiros.

por Tiago Lacerda / @elcerdo

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🏠 Refúgios Urbanos: cinco imóveis de 300 mil a 1,5 milhão em diferentes partes de SP

Esse post é um oferecimento da Refúgios Urbanos, uma imobiliária feito por (e para!) amantes da arquitetura #publi

Predinho charmoso no Brooklyn

Apartamento de 64m2 com janelões e pé direito alto em predinho charmoso com jardim, bicicletário e lavanderia coletiva. Informações no site da Refúgios.

Espaçoso e perto do metrô

Apartamento de ambientes integrados com três quartos, todo reformado e bem cuidado, no pedaço mais legal do Brooklyn (e perto do metrô!) Informações no site da Refúgios.

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Um apê na Vila Madá pra chamar de seu, com 55m2, piso de taco e muita luz natural. Informações no site da Refúgios.

Sobrado reformado na Pompéia

Lindo sobrado antigo totalmente reformado, cheio de luz, com jardim interno, quintal, terraço e escritório. Informações no site da Refúgios.

Apartamento com jardim reformado no Ipiranga

136m2, recém reformado, todo aberto e mobiliado, com três quartos em área bacana do Ipiranga. Informações no site da Refúgios.

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📚 estou lendo

Importante: os links abaixo são para vendas dos livros em livrarias independentes, para os sites das próprias editoras e/ou dos autores. Eu não ganho nada caso uma venda seja realizada através desses links — mas as livrarias, as editoras e os autores, sim ;)

Todas as bicicletas que eu tive - Power Paola

Linda novela gráfica da artista argentina, com lançamento simultâneo por cinco editoras sul-americanas, essa homenagem às bicicletas passa por diferentes histórias em Quito, Bogotá, Medellín, Cali, Buenos Aires e Paris.  À venda no site da Banca Tatuí.

A post shared by Powerpaola (@powerpaola)

Noite no paraíso - Lucia Berlin

Seleção de contos, todos absolutamente deliciosos, de uma das mestras da arte das histórias breves — às vezes autobiográficas, às vezes absurdas, às vezes as duas coisas. Em pré-venda no site da editora.

Doze césares - Mary Beard

A autora conta como as imagens dos doze mais célebres césares romanos influenciaram a estética e moldaram a visão do ocidente nos últimos dois mil anos. Pra além de ser interessantíssimo (e fácil de ler), o livro ainda é um dos volumes mais lindos em que coloquei a mão esse ano. O site da editora traz links para compra em diferentes livrarias e formatos.

dicas de livros de julho



💡  Vem aí: ABC da Newsletter:  criação e monetização de newsletters autorais

  • aulas nos dias 22 e 24/08 das 19h às 21h

  • foco em conteúdo autoral

  • estratégias e dicas de monetização

  • aprenda a definir seu tema e criar uma newsletter que é a sua cara

  • saiba como criar um calendário de publicação (e cumpri-lo)

  • estudos de cases

Acabei de abrir mais uma turma do ABC da Newsletter, agora divida em duas aulas e com foco em criação e monetização de newsletters autorais. A ideia é ter menos foco em plataforma (Substack ou qq outra) e mais em desenvolvimento do conteúdo e caminhos para criar uma newsletter monetizável. Apesar de ser mais longa que a edição passada (são aulas com uma hora de exposição + uma hora de perguntas/respostas), mantive o mesmo valor: R$330. Como sempre, tenho uma quantidade limitada de ingressos para estudantes e bolsas para quem está sem trampo e pode se beneficiar desse aprendizado - se é seu caso, fale comigo por email.

ingressos à venda no Sympla

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👁️ Sandman: e aí?

Fiquei muito feliz com a repercussão do texto sobre Sandman da semana passada, que eu tinha escrito antes de assistir. Eu já vi a temporada inteira duas vezes (funciono em dois modos: obsessão e desinteresse completo) e andei falando disso no Twitter:

Também falei sobre Sandman com a galera do Cinemático (contém opiniões fortes)

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Uma newsletter sobre o mal-estar da vida na São Paulo dos anos 2020 | por Gaía Passarelli -> http://gaiapassarelli.substack.com