🫗Tá Todo Mundo Tentando: sober curious
Existem motivos bem sólidos para olhar com atenção a nossa relação com a bebida.
Oi,
Essa é mais uma edição da Tá Todo Mundo Tentando, uma newsletter que desde 2021 vem tentando falar sobre essa barra que é viver nesse cotovelo da história.
Aliás, você leu a ótima edição especial que saiu sexta passada?
Zeladoria: especial David Lynch
Essa é uma edição especial sobre o David Lynch, meu cineasta favorito.
Antes de seguir, um aviso rápido: em outubro vai ter edição do ABC da Newsletter, meu curso pensado para quem ainda não tem uma newsletter e não sabe por onde começar (ou já tem e quer melhorar). Serão três aulas, preparadas a partir de sugestões práticas para aplicar no seu projeto, seja ele qual for. Inscreva-se nesse link para receber o aviso de pré-venda assim que estiver no ar:
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Você não está delirando: esse assunto já apareceu aqui antes, pelo menos duas vezes, em 2018 (quando eu tinha um Medium) e em 2022 (no primeiro ano da TTMT). Mas a temática “parar de beber”, ou pelo menos lidar bem com o álcool, aparecer repetidas vezes por aqui, é prova da importância da temática.
Outra prova são as respostas nesse Note:
Nos últimos anos, falar sobre parar ou reduzir o consumo de álcool vem deixando de ser tabu e ganhando status desejável. Cada vez mais pessoas, em diferentes países, têm experimentado a vida sóbria ou secas temporárias, como escolha consciente e não imposição. Tem até um nome bacanudo: sober curious1. Não se trata (só) de alerta para a gravidade da dependência, mas de um movimento cultural de repensar a presença do álcool em nossas vidas.
Há motivos bem sólidos para isso. A Organização Mundial da Saúde afirma que não existe nível seguro de consumo de álcool2. Qualquer dose, mesmo ocasional, aumenta o risco de câncer. O etanol, substância ativa das bebidas alcoólicas, é carcinógeno: está relacionado a tumores de boca, esôfago, fígado, cólon, mama. Nos Estados Unidos, quase metade das mortes por doenças do fígado em pessoas acima de 12 anos envolve o álcool; metade das mortes por cirrose também. Pesquisas do UK Biobank3, que avaliou mais de meio milhão de pessoas, mostram que até mesmo o consumo considerado “moderado” pode reduzir o volume cerebral, alterar a estrutura do coração e aumentar a gordura no fígado.
Apesar disso, consumir álcool é tratado como algo quase inevitável, num grau que abstêmios são vistos com curiosidade (ou desconfiança).
Na maior parte das culturas ocidentais, não há celebração sem brinde, não há encontro sem copo. O álcool está presente em todo o mundo, fez parte de culturas ancestrais em todos os continentes, teve papel crucial na expansão das culturas humanas. Funciona como um atalho, um caminho mais curto para se soltar, interagir, relaxar, dormir. Um copo é ajuda para ansiedade, solidão e pressão do cotidiano. Bebe-se para celebrar. Bebe-se porque todos estão bebendo, porque é esperado, porque é difícil recusar.
Esse enquadramento cultural explica por que parar é tão difícil, mesmo quando o custo à saúde, finanças ou relacionamentos é alto. Interromper um hábito individual significa enfrentar um sistema de expectativas sociais. Pesquisas recentes mostram que contextos importam tanto quanto quantidade: as pessoas bebem mais em grupos, em ambientes festivos, em estados emocionais alterados. Em muitas cidades, o álcool é onipresente: bares em cada esquina, promoções em supermercados, publicidade associando bebida a sucesso, juventude e prazer.
O paradoxo é que, enquanto o álcool é celebrado e amplamente aceito, seus efeitos não raro são devastadores - como pode atestar qualquer pessoa que teve um indivíduo com histórico de alcoolismo na família ou entre amigos, ou colegas de trabalho. Além do câncer e das doenças do fígado, está ligado a hipertensão, arritmias, acidentes vasculares cerebrais, declínio cognitivo e risco maior de demência. A curto prazo, afeta sono, digestão, humor, memória. Beber muito em pouco tempo aumenta o risco de acidentes, violência e morte súbita. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, o consumo nocivo de álcool está entre os principais fatores de risco para doenças crônicas e para mortes evitáveis em adultos jovens4.
Por outro lado, os benefícios de reduzir ou interromper o consumo aparecem imediatamente. Estudos indicam que poucas semanas sem álcool já melhoram o sono, a energia e a clareza mental. Em meses, há impacto positivo sobre o fígado, o sistema imunológico, a pele, o peso corporal. Financeiramente, a economia é óbvia. E, talvez o mais relevante, parar de beber altera a relação com a própria consciência: acordar sem ressaca, sem buraco negro de memória, sem medo do que se disse ou fez, é libertador.
Pequenas mudanças abrem espaço para outras experiências. Tirar a vodka do Bloody Mary, por exemplo, anda deixando claro pra mim que o ritual do copo é mais forte que o efeito da bebida. Semana passada, dividi refrescos sem álcool com minha amiga Bia, abstêmia há mais de um ano, e foi tão social quanto qualquer happy hour. E no fim de semana em que entreguei meu novo livro, brindei com meu namorado com um único drink no nosso bar preferido, ótimo, gelado, refrescante, prazeroso e, naquela tarde, suficiente.
São escolhas pessoais e pontuais que não eliminam a celebração, mas mudam como a vida social acontece, e me permitem dormir bem, acordar bem, porque o álcool tem dito um efeito ruim na minha cabeça e no meu corpo, não é de hoje.
Na vida eu já aprendi a ficar sem droga, a comer direito, a me livrar de relação tóxica, a viver sem carro, a tomar sol sem queimar a pele, a gostar de exercícios e de kombucha. Eu pari uma criança, sabe? Peguei trem sozinha no extremo sul da Índia. Escrevi um livro. Dirigi redação de um site com audiência massiva. Pago meu aluguel todo mês. Não é possível aprender a viver sem uma muleta que me faz tropeçar? Claro que dá.
Não se trata de demonizar quem bebe, nem de pregar abstinência universal. Mas sim de reconhecer que, diante dos dados, o consumo de álcool deveria ser encarado com mais honestidade. O mesmo rigor com que falamos sobre cigarro, dieta ou exercícios raramente é aplicado à bebida. Questionar esse hábito é questionar também o peso das pressões sociais que vêm com ele.
Viver sem álcool não precisa ser visto como perda, mas como escolha possível.
É uma mudança que não exige necessariamente ruptura definitiva — pode ser um mês, um ano, um experimento. Pode ser o que funciona para você, o que a sua vida precisar. O fundamental é abrir espaço para repensar a função que o álcool ocupa em nossas vidas e nas nossas culturas.
Assim como há glamour na ressaca, não há heroísmo em negar o copo. Há só a constatação honesta de que o corpo, a mente e o futuro aprendem algo quando para de funcionar no automático.
💌 Newsletter da semana: Tempo de Qualidade
A Tempo de Qualidade pulou do Instagram para o Substack com a intenção de trazer pensatas mais extensas e de digestão mais lenta, uma ideia que faz muito sentido mesmo.
Muita gente compartilhou por esses dias no Notes (pelo menos no meu Notes-verso) nessa edição sobre a importância do processo. Todo mundo que escreve sabe que existe uma parte do processo que não dá para pular, que é a de escrever. E, IAs a parte, escrever tem um problema incontornável: demora. Entre pensar um livro e coloca-lo no mundo, existem mil etapas como preparação de texto ou escolha da fonte, sem falar nas decisões mentais durante as mil versões de redação e as escolhas mercadológicas. Não raro leva mais de um ano. E ainda assim: é importante. Cada etapa é importante. Tem certas coisas que você não pode, nem quer, apressar.
Ainda assim: o mundo exige. Faça mais, faça mais rápido. O que estamos perdendo quando estamos fazendo as coisas sem prestar atenção no caminho?
Como em uma transição no TikTok, você corta e o macarrão já está pronto. Você pisca e o turista já está pulando em outro lugar. Você estala os dedos e a criança cresceu, a planta floresceu, o bordado está completo, o desenho está pintado, o projeto apareceu na sua mesa.
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As mais de uma centena de bibliotecas públicas paulistanas provam que essa categoria de espaço vai muito além da oferta de livros: são lugares de encontros e debates, de silêncio e de festa.
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Nasci e fui criada em uma família muçulmana, o que me fez crescer sem a presença do álcool. Mas claro que já experimentei e já senti a pressão social ao dizer: não bebo. Ai vem o espanto: nossa, como assim? Nadinha? Já bebi só pra não me sentir estranha no meio de estranhos… geralmente sou a pessoa sóbria no final da festa. E digo: não sei o que é ter ressaca e não quero saber.
que bom ler isso aqui. sigo tentando: quase 8 anos sem álcool. quase 8 anos de "um dia de cada vez".